SOLIDÃO DAS ÁGUAS
Rangel Alves da Costa*
O azul que desponta na curva lá em cima e vem cortando a vida, rente e molhando o pé do rochedo, sinuoso feito cobra e arisco como doce serpente, antes de dar medo faz molhar os olhos pela poesia e encharcar o corpo nas águas macias que vêm chegando com seu canto, grito e principalmente solidão.
Dizem que é um leito de rio; dizem que é um córrego que corre; dizem que é um afluente que vem se unir às outras águas; dizem que é um pedaço de mar desgarrado; dizem que é uma veia perdida de qualquer oceano; dizem que é uma correnteza da última chuva, da última tempestade, do último vendaval, do último fim de mundo, do dilúvio.
Dizem que vem silencioso e triste, num azul-esverdeado que mais parece a cor de fundo de uma vida vazia e solitária. E nem se preocupa em olhar de lado porque só pensa em mansamente correr para chegar mais depressa e talvez molhar os pés de quem estiver nas margens esperando a sua passagem.
Mas desta vez não vai passar, não vai seguir o curso e o percurso normal de um rio. Simplesmente vai parar diante daqueles pés e se fazer bonito e agradável para que ela sinta calor pelo corpo, tenha vontade de tomar banho, fique desnuda, lhe mostre os seios e o sexo e venha se molhar, se banhar das impurezas do mundo e novamente pecar no prazer das águas, no prazer da água excitada.
Por isso mesmo é que o rio fica impaciente esperando as chuvas lá em cima da serra, onde tem berço e nasce para a vida, de onde se encharca, se avoluma e começa a correr atrás daquelas margens já conhecidas e daqueles pés macios e morenos que estão todo entardecer a lhe esperar.
Na vontade que tem de começar a correr e chegar, muitas vezes quer partir quando ainda caem os primeiros pingos e tem que ir ganhando forças pelo meio do caminho até se fazer pronto e completo para seguir adiante e encontrar seu destino.
De tanto amar, de tanto querer se fazer sempre rio, sempre água e correr, desesperadamente correr com os braços estendidos nas margens, fez até um pacto com outros elementos da natureza. Acharia suave e bela melodia os sons ensurdecedores dos trovões; diria do brilho encantador e apaixonante quando avistasse um relâmpago rasgando estridentemente o céu escurecido; faria de conta que era a coisa mais normal e agradável do mundo ter um raio caindo ao redor ou mesmo no seu leito vazio.
E o que é pior, quanto mais o tempo se enfeasse e a natureza quisesse derramar todas as suas revoltas sobre a terra, mais diria o quanto era doce e sábia palavra para o coração ouvir as vozes da natureza em fúria. E tudo só porque muitas vezes não era nem poça, não era cacimba, não era qualquer filete jorrando nem córrego querendo despertar, e já queria ser rio.
Queria ser desesperadamente rio porque queria se danar a correr pelas curvas, montanhas, pedras e matos, para chegar às margens de um certo lugar onde avistaria ao longe os pés de uma pessoa, o corpo de uma pessoa e a face de uma bela morena ribeirinha. Depois era somente fazer a magia e os encantamentos das águas e esperar que o corpo suasse, as roupas caíssem ao chão e o corpo nu entrasse nos seus braços trêmulos pela paixão.
Mas a natureza não comanda sozinha seus destinos, pois sempre atenta à voz superior que sopra e através do vento ordena como tudo deve acontecer. E o vento foi transmitir o recado e disse que não haveria chuva nos próximos cinco anos. Consequentemente, as nascentes dos rios secariam e os leitos ficariam tristes e solitários até que uma nova ordem fizesse chover novamente por todos os recantos.
Quando o rio ficou sabendo da notícia, chorou tanto que suas lágrimas encheram o seu leito e sem querer de repente já estava às margens onde encontrava o seu amor. Só teve forças para olhar para ela e fechar os olhos. Sem força para seguir adiante, foi secando e se transformou apenas num pontinho molhado dentro de uma vastidão árida e solitária.
Antes que as chuvas voltassem mudaram o curso do rio. E nunca mais correu água por ali, nunca mais banho ao entardecer, nunca mais amores ao por do sol, nunca mais encontros, nada. Mas dizem que ainda hoje existe um pequeno sinal de água naquele leito e que nunca seca, nunca desaparece, nunca vai embora.
Mas não é água da chuva que lhe dá vida. São as lágrimas que são derramadas dentro de sua solidão assim que chega o entardecer.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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