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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 22 de setembro de 2010

TEMPO BOM: INOCÊNCIA (Crônica)

TEMPO BOM: INOCÊNCIA

Rangel Alves da Costa*


Mesmo que hoje muitos afirmem que a sociedade e os impulsos da vida moderna tomaram os espaços próprios da infância, da inocência, das brincadeiras verdadeiramente infantis e da pureza de pequeninos seres ainda em formação, verdade é que tais aspectos não desapareceram nas crianças, apenas foram escondidos, tomados deles, como se tivessem que viver suas idades segundo os desejos dos adultos.
Desse esbulho à infância é que surgem os absurdos, com criança perdendo sua feição infantil e passando a ter atitudes como se adolescente ou adulto fosse. Nesse caso, a infância deixa de ser uma fase essencial de encontro e construção da existência para se tornar numa mecanização cotidiana do ter de fazer isso ou aquilo, isso está certo ou errado, não é permitido isso ou aquilo. Ora, se a liberdade de fazer não fosse um dos privilégios da inocência de nada valeria essa fase da vida. Da adolescência à morte bastaria...
Tenho que a inocência não significa apenas o estado daquele que ainda não pecou, desconhecimento de certas coisas da vida ou mera ausência de culpa ou de malícia. Não. A inocência é um estado de espírito pelo espírito ter a pureza virginal das crianças, a absoluta convicção da beleza da vida na prática daqueles doces e simples atos que dão significado à existência.
Na inocência, nos gestos e atitudes da criança, tudo é tão normal, bonito e espontâneo. Conversa com a boneca de pano, tem raiva da boneca porque ela não diz se está com fome, de vez em quando está com a mão cheia de barro para colocar na boca, diz que a caixinha é o carro e qualquer coisa é uma bola. Brinca chutando meia cheia de pano, se esconde em qualquer lugar e grita para alguém lhe procurar, tem medo de gato e gosta de cachorro, acha que gelo queima os dedos, chora quando ouve algum trovão. Mas tudo é belo, lindo e maravilhoso porque tudo é infância.
A liberdade vem com muito mais liberdade, pois quer sair por aí, brincar, correr, pular, pegar estrelas com a mão, desenhar mundos na areia e ser cavaleiro da grande ordem medieval dos sonhos. Há o príncipe encantado e a princesa linda, há o dragão soltando fumaça pelas ventas e a bruxinha mais ou menos má fazendo estripulias com sua vassoura pelos céus do reino de encantamento. Quem derrubou meu castelo de areia mãe? Se foi o vento vou dar um nó nele e se foi a onda vou secar ela todinha...
Nessa perspectiva, porém já tratando de crianças um pouco mais conscientes, com idade mais avançada, Casimiro de Abreu, nosso poeta romântico, escreveu um doce poema chamado "Meus oito anos" que reflete bem a mágica e a magia presentes nessa fase da vida. Eis parte dos versos do poeta:

Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
................
Oh! dias da minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minha irmã!
Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberta o peito,
— Pés descalços, braços nus
— Correndo pelas campinas
A roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!
Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo.
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!
................................
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
— Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras
Debaixo dos laranjais!

Também tive infância e inocência de sertanejo. Juro por Deus que foi mais bonito que qualquer outra coisa da vida. Parece que foi ontem na minha memória, mas diante das mãos afiadas do tempo que arrastam para os desafios, para a dor, para outra realidade, tristemente constato que já dura uma eternidade. E então fico me perguntando que infância estará tendo as crianças do meu lugar, do meu sertão, que talvez nem de longe sejam ao menos vistas e respeitadas como crianças.
Mas houve um tempo, e que tempo bom... Era um tempo de crianças sertanejas e as suas brincadeiras, suas invencionices e criatividades, suas desobediências sadias e suas aprendizagens nas lições próprias do sertão. Refiro-me a um tempo atrás de mim, que gostaria de alcançá-lo através da palavra e perguntá-lo por que a meninada de hoje não sabe mais viver o seu tempo.
Tempo de criança é também brincadeira, é essencialmente um momento de aproveitar essa fase onde o espírito alegra-se com a bola, a boneca, o carrinho, a correria, o esconde-esconde. A felicidade flui na arrumação da casa dos brinquedos, no ajeitar a roupa da boneca de pano, no encher um meião com retalhos de pano e dizer que é uma bola, no correr descalço atrás dessa bola. Não precisava abrir a caixa com a novidade de plástico ou de metal, que corre, apita ou chora sozinha, bastava juntar restos e pedaços e criava-se um brinquedo de verdade. No sertão era assim...
Não precisa imaginar tanto; a recordação é fértil para reencontrar coisas boas. Fui criança e criança sertaneja, conheço muito bem o que é passar a infância na região. Também traquinei, corri pelos descampados, catei frutas pelos matos e tomei muito banho no riacho. Fiz, bem sei, ao menos uma parte do que a criança sertaneja tinha direito a fazer: tudo.

continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Caca disse...

Quem teve, como eu uma infância boa como a sua não tem como não se lembrar emocionado daqueles tempos através de sua crônica. Hoje, a infãncia dura pouquíssimo tempo, a adolescência está sendo espichada até depois dos trinta anos e vamos que que maturidade poderemos esperar destes seres daqui a um tempo. Um abraço. Paz e bem.