Rangel Alves da
Costa*
Da musicalidade
nordestina, talvez a ressonância do sopro dos pífanos seja aquela que mais
sintetiza o enlaçamento entre a cultura popular e a religiosidade. Mesmo
originários da Europa, os pífanos foram sendo adaptados segundo os instrumentos
da terra e tornados inseparáveis dos festejos religiosos, dos leilões e como
acompanhamento de diversas celebrações sertanejas. Seja de taboca, taquara,
bambu ou osso, importa mesmo é que daquelas espécies de flautas ecoem a
plangência melodiosa que tanto comove os corações de um povo reconhecido em
seus ritmos.
Foi num sentido
de nostalgia e de revivência das autênticas tradições sertanejas, que o toque
dos pífanos e sua percussão de raiz foram lembrados para os eventos alusivos à
memória de Alcino Alves Costa nos três anos de sua ausência terrena, ocorridos
no último dia 1º, no sertão sergipano de Poço Redondo. Procurou-se unir em
torno dos pífanos não só o culto às raízes sertanejas tão características em
Alcino e sua obra, como uma necessária reverência à família Vito, sob cujas
mãos a instrumentalidade cabocla foi se expandindo como força de fé desde os
tempos mais antigos.
Inegável
que a família Vito persiste como referência maior na instrumentalidade
percussionista do pífano por todo o sertão sergipano e além-fronteiras.
Enraizada na própria localidade sertaneja, a família jamais se dobrou aos novos
ritmos surgidos e foi mantendo, como sacralidade e devotamento, a vida desse
relicário musical. Sendo um povo simples, humilde e trabalhador, tem na sua
arte a expressão maior da existência. Causa verdadeiro encanto à alma ter-se
diante daquelas mãos maltratadas pelo trabalho na terra e lábios queimados de
sol e sentir que a poesia musical sertaneja vai surgindo de forma incomparável.
Foi na simplicidade na vida e na arte que a
família convidada (Mané Vito, Geno Vito e mais três integrantes) se reuniu para
o ressoar de seus pífanos, da caixa e da zabumba, perante uma multidão
extasiada com a musicalidade tão sua, porém cada vez mais relegada ao
esquecimento. Sim, por que os Vito, antes de apresentações costumeiras nas
festas e celebrações religiosas, agora surgem com raridade. Mas ali, após o
entardecer sertanejo, senhores e senhoras, moços e moças, jovens e meninos, uma
multidão, todos num encantamento só: o despertar dos pífanos. Uma comoção sem
igual.
Família Vito |
A família
Vito é de ancestralidade na sua arte. De geração a geração a linhagem vem
mantendo com maestria a tradição do sopro ritmado nas tabocas e na batida
cadenciada dos outros instrumentos. Passando de pai para filho e assim em
diante, a verdade é que o repositório dos Vito aos poucos foi se transformando
em verdadeira relíquia e hoje é objeto de estudos e publicações. Uma tradição
musical anteriormente acessível a todos, pois anunciados com fogos em cada
celebração, teve que forçosamente se preservar no recolhimento ante os modismos
surgidos. Noutros tempos, não havia festa da padroeira, leilão ou quermesse,
que não fosse abrilhantada pelos pífanos dessa família.
Contudo, o
refreamento cada vez maior da abnegação religiosa do sertanejo, bem como os
novos acompanhamentos musicais que passaram a pontuar nas missas e nos festejos
interioranos, resultou no distanciamento da arte dos Vito. A família foi se
tornando raridade nas celebrações e festejos e os sons de seus pífanos quase
que desconhecidos pelos mais jovens. Tal afastamento, porém, acabou provocando
uma importância ainda maior à família de artistas: tornou-se reconhecida preciosidade
em outras regiões e venerada como relíquia entre os que conhecem e sentem
saudades de sua arte singela.
Cumpriram
com a promessa e depois das quatro da tarde já estavam defronte ao memorial. E
de onde só sairiam após o término da missa, já depois das oito da noite. Dois
pífanos e dois instrumentos de acompanhamento, além do cantador principal. Mas
foi como todas as gerações da família estivessem ali reunidas. A matriarca e
festeira Alzira, o esposo Zé Vito e tantos outros, pois os Vito eram e ainda
são muitos. Das raízes distantes, como Dona Guiomar, ou de percurso de chão,
como João Vito, Ventura e o afamado Mané Vito. Sem falar num dos filhos de
Cabel Vito, o genial Geno Vito, aboiador maior dos lamentos vaqueiros, reconhecido
internacionalmente e hoje o responsável pela preservação da arte familiar.
O momento
mais marcante se deu quando os pífanos fizeram ecoar uma velha canção de
reisado: Ô de casa, ô de fora/ Ô de casa, ô de fora/ Maria vai ver quem é/
Maria vai ver quem é/ Somos cantador de Reis/ Somos cantador de Reis/ Quem
mandou foi São José/ Quem mandou foi São José/ Cantar Reis não é pecado/ Cantar
Reis não é pecado/ São José também cantou/ São José também cantou/ São José
também cantou/ Nesse dia de alegria/ Mas depois de muito tempo/ São José também
chorou/ Pois que viu seu filho morto/ Pregado numa cruz com tanto amor.
Reisado a
São José, eis o nome da cantoria de domínio público que foi compartilhada em
coro pelo público ali presente. E quando o Padre Mário chegou para a celebração
e encontrou os Vito ressoando sua música de profunda raiz, então não teve
dúvida em pedir acompanhamento na celebração. E mais uma vez a religiosidade e a
fé se uniram à sacralidade musical daquela família tão sertaneja.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Olá Rangel, postei esse seu artigo - que achei ótimo - com a devida referência ao seu nome e o crédito de autoria no meu blog www.sertaodesencantado.blogspot.com
Caso não concorde, avise que excluirei
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