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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 10 de novembro de 2015

OS PÍFANOS DA FAMÍLIA VITO


Rangel Alves da Costa*


Da musicalidade nordestina, talvez a ressonância do sopro dos pífanos seja aquela que mais sintetiza o enlaçamento entre a cultura popular e a religiosidade. Mesmo originários da Europa, os pífanos foram sendo adaptados segundo os instrumentos da terra e tornados inseparáveis dos festejos religiosos, dos leilões e como acompanhamento de diversas celebrações sertanejas. Seja de taboca, taquara, bambu ou osso, importa mesmo é que daquelas espécies de flautas ecoem a plangência melodiosa que tanto comove os corações de um povo reconhecido em seus ritmos.
Foi num sentido de nostalgia e de revivência das autênticas tradições sertanejas, que o toque dos pífanos e sua percussão de raiz foram lembrados para os eventos alusivos à memória de Alcino Alves Costa nos três anos de sua ausência terrena, ocorridos no último dia 1º, no sertão sergipano de Poço Redondo. Procurou-se unir em torno dos pífanos não só o culto às raízes sertanejas tão características em Alcino e sua obra, como uma necessária reverência à família Vito, sob cujas mãos a instrumentalidade cabocla foi se expandindo como força de fé desde os tempos mais antigos.
Inegável que a família Vito persiste como referência maior na instrumentalidade percussionista do pífano por todo o sertão sergipano e além-fronteiras. Enraizada na própria localidade sertaneja, a família jamais se dobrou aos novos ritmos surgidos e foi mantendo, como sacralidade e devotamento, a vida desse relicário musical. Sendo um povo simples, humilde e trabalhador, tem na sua arte a expressão maior da existência. Causa verdadeiro encanto à alma ter-se diante daquelas mãos maltratadas pelo trabalho na terra e lábios queimados de sol e sentir que a poesia musical sertaneja vai surgindo de forma incomparável.
 Foi na simplicidade na vida e na arte que a família convidada (Mané Vito, Geno Vito e mais três integrantes) se reuniu para o ressoar de seus pífanos, da caixa e da zabumba, perante uma multidão extasiada com a musicalidade tão sua, porém cada vez mais relegada ao esquecimento. Sim, por que os Vito, antes de apresentações costumeiras nas festas e celebrações religiosas, agora surgem com raridade. Mas ali, após o entardecer sertanejo, senhores e senhoras, moços e moças, jovens e meninos, uma multidão, todos num encantamento só: o despertar dos pífanos. Uma comoção sem igual.
Família Vito
A família Vito é de ancestralidade na sua arte. De geração a geração a linhagem vem mantendo com maestria a tradição do sopro ritmado nas tabocas e na batida cadenciada dos outros instrumentos. Passando de pai para filho e assim em diante, a verdade é que o repositório dos Vito aos poucos foi se transformando em verdadeira relíquia e hoje é objeto de estudos e publicações. Uma tradição musical anteriormente acessível a todos, pois anunciados com fogos em cada celebração, teve que forçosamente se preservar no recolhimento ante os modismos surgidos. Noutros tempos, não havia festa da padroeira, leilão ou quermesse, que não fosse abrilhantada pelos pífanos dessa família.
Contudo, o refreamento cada vez maior da abnegação religiosa do sertanejo, bem como os novos acompanhamentos musicais que passaram a pontuar nas missas e nos festejos interioranos, resultou no distanciamento da arte dos Vito. A família foi se tornando raridade nas celebrações e festejos e os sons de seus pífanos quase que desconhecidos pelos mais jovens. Tal afastamento, porém, acabou provocando uma importância ainda maior à família de artistas: tornou-se reconhecida preciosidade em outras regiões e venerada como relíquia entre os que conhecem e sentem saudades de sua arte singela.
Cumpriram com a promessa e depois das quatro da tarde já estavam defronte ao memorial. E de onde só sairiam após o término da missa, já depois das oito da noite. Dois pífanos e dois instrumentos de acompanhamento, além do cantador principal. Mas foi como todas as gerações da família estivessem ali reunidas. A matriarca e festeira Alzira, o esposo Zé Vito e tantos outros, pois os Vito eram e ainda são muitos. Das raízes distantes, como Dona Guiomar, ou de percurso de chão, como João Vito, Ventura e o afamado Mané Vito. Sem falar num dos filhos de Cabel Vito, o genial Geno Vito, aboiador maior dos lamentos vaqueiros, reconhecido internacionalmente e hoje o responsável pela preservação da arte familiar.
O momento mais marcante se deu quando os pífanos fizeram ecoar uma velha canção de reisado: Ô de casa, ô de fora/ Ô de casa, ô de fora/ Maria vai ver quem é/ Maria vai ver quem é/ Somos cantador de Reis/ Somos cantador de Reis/ Quem mandou foi São José/ Quem mandou foi São José/ Cantar Reis não é pecado/ Cantar Reis não é pecado/ São José também cantou/ São José também cantou/ São José também cantou/ Nesse dia de alegria/ Mas depois de muito tempo/ São José também chorou/ Pois que viu seu filho morto/ Pregado numa cruz com tanto amor.
Reisado a São José, eis o nome da cantoria de domínio público que foi compartilhada em coro pelo público ali presente. E quando o Padre Mário chegou para a celebração e encontrou os Vito ressoando sua música de profunda raiz, então não teve dúvida em pedir acompanhamento na celebração. E mais uma vez a religiosidade e a fé se uniram à sacralidade musical daquela família tão sertaneja.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Maria Aurea Santa Cruz disse...

Olá Rangel, postei esse seu artigo - que achei ótimo - com a devida referência ao seu nome e o crédito de autoria no meu blog www.sertaodesencantado.blogspot.com
Caso não concorde, avise que excluirei