Rangel Alves da
Costa*
Os últimos
e estarrecedores acontecimentos, principalmente o rompimento da barragem no
município mineiro de Mariana e a descida de um rio de lama sobre casas, pessoas
e tudo que houvesse ao redor, bem como a sequência de ataques terroristas na
capital francesa, tornando a noite parisiense num cenário de selvageria, de
sangue e mortes, demonstram a fragilidade da vida ante as ameaças ocultas. E
mais ainda: confirmam que todas as grandes conquistas das civilizações se
ajoelham e se submetem à perversão de alguns ditos civilizados.
Quando se
imaginava haver o homem novo, talhado pelos novos princípios e carregando na
sua alma o humanismo e a compreensão, vencido a barbárie, eis que ressurge para
mostrar a prevalência de seus instintos mais cruéis e sanguinários. Quando se
imaginava haver o mundo moderno se distanciado daquelas hordas assassinas e
daquelas levas de fogo e sangue, eis que novamente a sociedade é tomada pelo
medo, pela dor e pela desesperança. Quando se imaginava haver expurgado os
tempos de trevas, eis que o caos e a bestial cegueira apagam todas as luzes da
paz social.
Quando se
pensava haver o homem aprendido a respeitar o próximo, a lhe garantir o mínimo
de segurança no seu cotidiano de vida e fazer das transformações algo benéfico
a todos, eis que a voracidade capitalista torna em vítima qualquer um que
esteja ao redor. Quando se pensava que as tecnologias, os métodos de segurança
e as modernas normas de proteção seriam suficientes para permitir o progresso
sem a vitimização do ser, eis que surge a constatação de que o homem ainda não
aprendeu a avistar o outro que está adiante e tanto faz que pereça por erros,
negligências e omissões.
Quando se
pensava muito – e muito diferente – sobre o mundo e sobre o homem, eis que a
ignorância sobre tudo surge como resultado final. E a sociedade, tão duramente
formatada, e a vida, tão asperamente evoluída, agora se afeiçoam a um nada.
Tudo feito, tudo conseguido, e agora se mostrando um nada. Ora, o que é a vida,
o que o homem, o que o mundo senão uma folha seca à vontade do vento, um grão
de areia em prenúncio de vendaval, uma lágrima de orvalho ante o primeiro sol?
Tudo e tanto nada, assim a vida, assim o homem.
Parecia
realismo fantástico, uma situação imaginária, uma realidade possível de
acontecer somente por devaneios ou ilusões. Mas ao lado do rio de sangue, ao
lado daquela veia aberta jorrando a dor e o sofrimento, estavam pessoas
entristecidas, com olhares de angústia, descrentes de tudo, com mãos trêmulas
depositando flores e acendendo velas. Parecia um jardim iluminado, mas nada
mais que uma dolorosa consagração aos mortos. No silêncio, o grito aflito pelos
inocentes alvejados pela bestialidade humana.
Parecia
uma coisa do outro mundo, algo tão inimaginável de acontecer que logo se
imaginou o fim dos tempos. Como as profecias apocalípticas preveem o fim dos
tempos também através de uma enxurrada de lama que desce de boca aberta e
devorando tudo, então talvez ali estivesse a voracidade mortal em ação. E
estava mesmo, só que tão real como a dor sofrida dali em diante. Após o avanço
impiedoso do lamaçal e as vítimas transformadas em escombros de barro, somente
restaram as bocas em preces, as mãos frágeis unidas em oração e as velas acesas
clamando a piedade divina.
Preces,
flores e velas aos mortos. As manchetes dos jornais e o noticiário televisivo
se tornaram em verdadeiros obituários de tragédias e mais tragédias, todas provocadas
pela insensatez humana, por ataques terroristas, pelas perseguições religiosas
de raça, por desvirtuamentos na fé que se voltam à dizimação de vidas
inocentes. Todos os dias e a nova e já tão velha notícia: o rompimento da
barragem que deixou vítimas e desaparecidos, a série de ataques terroristas
provocando mais de uma centena de mortes, explosão em mercado africano que
deixou dezenas de mortes, grupos extremistas que assaltam vilarejos e levam
crianças, suicidas que levam um falso deus na cintura e acendem o pavio da
crueldade, pessoas fugindo das guerras e morrendo nas travessias. A todo
instante uma morte no mundo motivada pelo terror, pelo fundamentalismo, pelo
extremismo religioso e covarde. A todo instante dezenas, centenas de vitimados
pelas razões mais insanas.
Quantas
preces ainda terão que ser invocadas em nome de inocentes vitimados pela
própria ação humana? Quantas flores ainda serão depositadas em altares pelos
muros do mundo em homenagem aos mortos pela lama, pela bomba, pelo disparo,
pelo fogo, pelo ataque covarde? Quantas velas ainda terão que ser acesas para
iluminar a memória dos falecidos pela vileza humana e, colocando-as também ante
a face da pessoa em sofrimento, iluminar também o que resta da vida? E quantas
lágrimas ainda serão derramadas neste leito por onde escorre o desalento, a
tristeza e o sofrimento?
As bocas
estremecem, se cansam, os lábios anestesiam de tanto orar. As preces, por mais
repetidas que sejam, parecem não bastar. As flores já não são suficientes em
todas as primaveras possíveis. E todas parecem nascidas murchas e tristes pela
sina que terão. As velas apenas chamejam com pouca luz. A ventania da dor é
forte demais. E as lágrimas já não têm nascentes. Tudo ressecou pelo
sofrimento. O mundo não merecia morrer assim.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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