SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 3 de novembro de 2015

CONFISSÕES DE SOLIDÃO


Rangel Alves da Costa*


É fácil perceber a dificuldade do solitário para confessar algo a alguém. O próprio estado de solidão é o empecilho maior ao diálogo. Não me parece ajuizado falar sempre sozinho, dividir palavras com os espaços vazios, fazer do nada um interlocutor.
Não significa que se tenha de ficar distante de tais atitudes. É muito bom conversar sozinho, sorrir sozinho, entristecer ou se alegrar pela palavra dita a si mesmo. Nada demais. Pessoas existem que vão pelas calçadas e de repente só faltam brigar consigo mesmas pelo que falam e respondem.
 Conversar sozinho nada mais que a soltura da palavra e do pensamento represados. O transbordamento da voz, ainda que quase silenciosa, expressa um estado mental que não se contenta em diluir-se interiormente. Mesmo as palavras desconexas nascem assim, como sonhos que surgem na imaginação e ganham vida própria.
Mas na solidão é diferente. A solidão do solitário é tão solitária que nem eco ressoa de sua pronúncia. As vozes interiores surgidas, sempre no contexto motivador do recolhimento, acabam se assemelhando ao vazio ao redor. Surgem como sopros, como ressonância de uma brisa qualquer.
Não apenas a palavra como tudo ao redor parece inexistente. A escuridão ou a luz do quarto, a janela aberta ou fechada, os móveis, a cama desforrada, a chuva caindo, os gritos ao longe, nada disso consegue acordar o sono profundo do solitário. Um sono sem adormecimento, mas apenas de entorpecimento da alma, da mente, da razão existencial.
Adiante uma linda paisagem, um cenário de despertar sentimentos. Há um entardecer, há um cais, há um mar, há uma onda que vem e que volta. Há um barco de partida e outro de chegada, há uma gaivota no ar, uma pedra que chora e uma flor na areia. Mas é como nada emoldurasse a fotografia.
Há mil razões para rever velhos álbuns, reler antigas cartas, abrir baús, olhar porta-retratos, reencontrar as relíquias, trazer o passado para perto do coração. Tudo adiante, esvoaçando ao vento, tocando a face, chamando o olhar, insistindo para ser reencontrado. Mas tanto faz a tempestade como a calmaria. O mar é o mesmo. E apenas ele singrando pelas distâncias da mente.
Chorar na solidão. O choro velado, a lágrima escondida, hábitos e costumes do solitário. Chorar é bom, vai diluindo os tormentos internos e reconfortando a alma. Mas a lágrima jamais pode ser vista como característica da solidão. Enquanto esta é ausência, distância e, ao mesmo tempo, retraimento e busca, aquela se expressa na dor e no sofrimento.
E solidão não é dor nem sofrimento. Pode estar acompanhada de tristeza ou melancolia, mas não de tormento aflitivo. Ninguém se distancia do mundo ou se fecha num quarto, se recolhe instintivamente ou apenas torna tudo ao redor como inexistente, apenas pelo fato de estar sofrendo. O sofrimento pode ser desfeito de diversas formas, enquanto a solidão chega e sai a seu bel-prazer.
Também sei que o espinho da solidão não é tão ferino ou devorador, eis que ela anestesia o instante. Sei que a navalha da solidão não sangra as entranhas nem mutila a vida, pois sua lâmina apenas passeia pelos instintos. Sei que a solidão não se faz fogueira nem abrasa os sentimentos sublimes, eis que vaporiza as chamas mais vorazes.
E assim por que solidão não é depressão, não é desfalecimento da alma nem caminho ao sacrifício. Ninguém definha ou se exaure de solidão, ninguém se mortaliza ou se finda de solidão. Mas na depressão sim. E solidão é estado que preserva o ser flutuante e conduzindo vai até o reencontro da realidade.
Mesmo que não se atenha ao mundo lá dentro ou lá fora, a solidão é amiga da chuva, do silêncio, da noite, do entardecer. Tudo se assemelha a uma natureza-morta, cuja forma diz muito mais que a representação. E por isso as folhas de outono entram pela janela e se assentam no colo, mas tanto faz que seja um pássaro cantante.
Tanto faz qualquer coisa. Na solidão, tudo tanto faz.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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