Rangel Alves da
Costa*
É fácil
perceber a dificuldade do solitário para confessar algo a alguém. O próprio
estado de solidão é o empecilho maior ao diálogo. Não me parece ajuizado falar
sempre sozinho, dividir palavras com os espaços vazios, fazer do nada um
interlocutor.
Não significa
que se tenha de ficar distante de tais atitudes. É muito bom conversar sozinho,
sorrir sozinho, entristecer ou se alegrar pela palavra dita a si mesmo. Nada
demais. Pessoas existem que vão pelas calçadas e de repente só faltam brigar
consigo mesmas pelo que falam e respondem.
Conversar sozinho nada mais que a soltura da
palavra e do pensamento represados. O transbordamento da voz, ainda que quase
silenciosa, expressa um estado mental que não se contenta em diluir-se
interiormente. Mesmo as palavras desconexas nascem assim, como sonhos que
surgem na imaginação e ganham vida própria.
Mas na
solidão é diferente. A solidão do solitário é tão solitária que nem eco ressoa
de sua pronúncia. As vozes interiores surgidas, sempre no contexto motivador do
recolhimento, acabam se assemelhando ao vazio ao redor. Surgem como sopros,
como ressonância de uma brisa qualquer.
Não apenas
a palavra como tudo ao redor parece inexistente. A escuridão ou a luz do
quarto, a janela aberta ou fechada, os móveis, a cama desforrada, a chuva
caindo, os gritos ao longe, nada disso consegue acordar o sono profundo do
solitário. Um sono sem adormecimento, mas apenas de entorpecimento da alma, da
mente, da razão existencial.
Adiante
uma linda paisagem, um cenário de despertar sentimentos. Há um entardecer, há
um cais, há um mar, há uma onda que vem e que volta. Há um barco de partida e
outro de chegada, há uma gaivota no ar, uma pedra que chora e uma flor na
areia. Mas é como nada emoldurasse a fotografia.
Há mil
razões para rever velhos álbuns, reler antigas cartas, abrir baús, olhar
porta-retratos, reencontrar as relíquias, trazer o passado para perto do
coração. Tudo adiante, esvoaçando ao vento, tocando a face, chamando o olhar,
insistindo para ser reencontrado. Mas tanto faz a tempestade como a calmaria. O
mar é o mesmo. E apenas ele singrando pelas distâncias da mente.
Chorar na
solidão. O choro velado, a lágrima escondida, hábitos e costumes do solitário.
Chorar é bom, vai diluindo os tormentos internos e reconfortando a alma. Mas a
lágrima jamais pode ser vista como característica da solidão. Enquanto esta é
ausência, distância e, ao mesmo tempo, retraimento e busca, aquela se expressa
na dor e no sofrimento.
E solidão
não é dor nem sofrimento. Pode estar acompanhada de tristeza ou melancolia, mas
não de tormento aflitivo. Ninguém se distancia do mundo ou se fecha num quarto,
se recolhe instintivamente ou apenas torna tudo ao redor como inexistente,
apenas pelo fato de estar sofrendo. O sofrimento pode ser desfeito de diversas
formas, enquanto a solidão chega e sai a seu bel-prazer.
Também sei
que o espinho da solidão não é tão ferino ou devorador, eis que ela anestesia o
instante. Sei que a navalha da solidão não sangra as entranhas nem mutila a
vida, pois sua lâmina apenas passeia pelos instintos. Sei que a solidão não se
faz fogueira nem abrasa os sentimentos sublimes, eis que vaporiza as chamas
mais vorazes.
E assim
por que solidão não é depressão, não é desfalecimento da alma nem caminho ao
sacrifício. Ninguém definha ou se exaure de solidão, ninguém se mortaliza ou se
finda de solidão. Mas na depressão sim. E solidão é estado que preserva o ser
flutuante e conduzindo vai até o reencontro da realidade.
Mesmo que
não se atenha ao mundo lá dentro ou lá fora, a solidão é amiga da chuva, do
silêncio, da noite, do entardecer. Tudo se assemelha a uma natureza-morta, cuja
forma diz muito mais que a representação. E por isso as folhas de outono entram
pela janela e se assentam no colo, mas tanto faz que seja um pássaro cantante.
Tanto faz
qualquer coisa. Na solidão, tudo tanto faz.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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