Rangel Alves da
Costa*
Não são
poucas as pessoas que se veem tomadas de sentimentalismos ao ouvir a palavra
“cais”. Sim, aquele cais à margem das águas e servindo para a chegada e partida
de embarcações e o embarque e desembarque de pessoas e mercadorias.
Sim,
aquele cais ao longo das areias e tomado de pedras que são constantemente
lavadas pelas ondas que avançam e se recolhem ao longo do dia. Um cais de
coqueiros e coqueirais, de ventania cortante e gaivotas passeando pelos
espaços. Um cais de silêncio e solidão nas noites de lua cheia.
Sim,
aquele cais que se faz de porto para as águas adiante e se enche de vida
durante o dia, como fronteira entre a terra firme e a imensidão, e que
solitário entristece logo após o entardecer. O sol se pondo sobre as águas,
espalhando um dourado de fogo, e as ondas mais agitadas beijando as pedras e
arrastando as areias.
Sim,
aquele cais de concha deixada na areia e de ventania que sopra segredo ao seu
ouvido. Cais de passos sulcados na terra molhada e flores mortas esperando o
abraço das ondas. Um caminho que após o pôr do sol se faz estrada de solidão e
por onde passam os amantes e os desamados, os apaixonados e desiludidos do
coração.
Sim,
aquele cais onde a tristeza sentou numa pedra e chorou, onde a mão acenou para
o barco ao longe, onde a vela foi acesa em memória dos que não retornaram das
águas, onde o aflito coração se desespera pela demora do pescador. Um cais que
no silêncio da noite grita através do mistério das ondas. E onde a sereia se
deita para sentir o clarão da lua sobre seu corpo.
Sim,
aquele cais tão perto e tão distante dos casebres ao redor, tão conhecido e tão
desconhecido pelos moradores das margens das águas, tão vida e tão sofrimento.
Um cais que se faz de cama para os desvalidos, que se faz de leito de sonhos
para os meninos de rua e menores abandonados. Mas que à primeira luz da aurora
passa a ser somente da areia, das ondas, das pedras, das águas, das
embarcações.
Sim,
aquele cais de nome riscado na areia, de poemas de amor já levados nas ondas,
de roupas largadas ao relento para o amor em noites de lua grande. Um cais que
é tão belo ao olhar, mas também tão melancólico nas suas histórias. As esperas
aflitas, os acenos de adeus, as desesperanças que só aumentam sem que qualquer
barquinho seja avistado. E das decisões impensadas em entrar nas águas e sumir
para sempre.
Sim,
aquele cais de batuques, de rodas, de cantos, preces e oferendas, de macumbas e
devotamentos, de deuses das águas e outros deuses, de encontro entre o sagrado
e o profanado. Mas também o cais como porta para o mundo de Iemanjá, como
chamado à rainha através de flores, espelhos, perfumes e lavandas, fitas e
galanteios de adoração. Então as chaves da fé abrem as portas das ondas para
que as dádivas cheguem ao colo da grande senhora do mar.
Sim,
aquele cais cheirando a frescor, cheirando a maresia, cheirando a peixe,
cheirando a suor, cheirando a tudo e a nada, pois um cheiro tão diferente é o
cheiro do cais. Mas que de repente se torna como um cais cheirando a pomar
pelas frutas olorosas que chegam dos litorais. Um cais perfumado de mangas,
mangabas, jacas, sapotis, jabuticabas, mamões, cajus, umbus maduros, araçás do
céu.
O cais se
alegra, extasia de contentamento, mas também entristece e chora. Eis que cais
de retorno e também de partida. Um cais de mistérios e segredos, de abraços e
acenos de incertezas, de olhares que vão se perdendo nas distâncias e depois se
recolhem para o lacrimejar. Um cais que é vida e destino.
Um cais
que é meu. Aquele cais que é tão meu. Mesmo depois de muitos anos distante de
qualquer cais, o tenho diante de meu olhar toda vez que abro a janela ao
entardecer. Ouço as ondas lavando as pedras, batendo em avanço e recuo. Vejo as
gaivotas e os coqueirais na sua valsa de ventania. E eu caminhando pelas
areias. E eu escrevendo nas areias um poema de solidão.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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