Rangel Alves da
Costa*
Tende
piedade, eis a tradução da expressão latina miserere.
Um dos Salmos de David, precisamente o 51, se inicia com as palavras Miserere mei, Deus (Senhor tende piedade
de mim): Tem misericórdia de mim, ó Deus, segundo a tua benignidade; apaga as
minhas transgressões, segundo a multidão das tuas misericórdias. Lava-me
completamente da minha iniquidade, e purifica-me do meu pecado. Porque eu
conheço as minhas transgressões, e o meu pecado está sempre diante de mim.
Contra ti, contra ti somente pequei, e fiz o que é mal à tua vista, para que
sejas justificado quando falares, e puro quando julgares...
Pela parte
inicial do Salmo, logo se percebe um pedido de clemência divina ante as
transgressões terrenas. Pecador, culpado, transgressor e temeroso quanto às
consequências dos atos, só resta ao infrator dos mandamentos sagrados o pedido
de misericórdia. Ora, o homem temente e que tem sua vida balizada pela fé e
pela religiosidade, passa a se sentir um verdadeiro miserável ante o
cometimento das impurezas terrenas. Daí o miserere,
o pedido de perdão, a invocação do indulto celestial. Mas quando o miserere ou a compaixão não diz respeito
à transgressão humana, mas pelos infortúnios da realidade da vida?
Em tal
contexto, quando o sagrado deve ter compaixão pelos sofrimentos do homem
perante sua existência, o miserere ganha a conotação de verdadeira miséria. E
miséria é a tradução italiana para miserere.
Tende misericórdia, Senhor, do homem na miséria no mundo, seria a expressão
adequada. Ou ainda tirai da aflição este mundo que com sua miséria esvai cada
vez mais o homem e a vida. Das misérias espalhadas no mundo é que ecoam os
rogos pela indulgência divina. Eis que somente a força sagrada para minimizar o
que se alastra como penúria e desesperança.
A miséria
que se volta à compaixão possui muitas feições. O mundo, ao ser povoado por
seres que renegam a própria existência e sobre o seu chão semeiam máculas e
iniquidades, dimensionou a miséria de tal modo que o infortúnio passou a ser
avistado em tudo e em todo lugar. Há a miséria da fome, da pobreza absoluta, da
mendicância generalizada, da violência, da falta de serviços básicos à
sobrevivência, da arrogância e submissão dos poderes e governantes, no trato do
homem para com o homem, nos desnorteamentos aos princípios éticos e morais.
Há a
miséria moral, da invirtude, da desonra. Por mais que se arvorem de poder e
riqueza, miseráveis são todos aqueles que vivem somente para as coisas
materiais. A miséria da ganância, da cobiça, da esperteza, da cegueira social,
da injustiça. Misérias que nascem e se propagam intimamente, que vão se
enraizando nos sentimentos e mais tarde desumanizam totalmente as pessoas. Em
situações tais, as aparências são como frágeis véus que se desprenderão a
qualquer instante. Mas antes disso as calamidades existenciais já estarão
propagadas, pois não há nada mais mortificante que viver carregando a
miserabilidade na alma.
Há que se
indagar, contudo, se a miséria está sobre o mundo ou sobre o homem. Ou ainda se
é a terra que se tornou estéril à prosperidade ou se foi o homem quem escolheu
espalhar ervas daninhas onde vingavam os frutos. A verdade é que o mundo não se
transforma sozinho, quase sempre sofrendo a ação humana para mudar de feição. E
assim porque o homem faz, modifica, destrói, e depois deixa a miséria onde
havia riqueza. Onde a mão do homem alcança nada mais será como antes. Foi pela
mão do homem que a miséria do mundo foi sendo disseminada, mas como este sempre
se esquiva na sua culpa, o que se tem é um miserável mundo sem que se reconheça
um culpado.
Como num
sopro do tempo, as misérias foram se espalhando por todo lugar. Os nativos, ao
receberem os navegantes brancos com frutos e mel, com acolhida e respeito,
jamais imaginaram estarem abrindo as portas às misérias da exploração, das
doenças, das mortes, da dizimação de raças e nações inteiras. Os povos de
mundos distantes, ao perceberem a chegada das legiões romanas e suas armaduras
lustrosas, certamente não imaginavam que suas tribos e cidadelas seriam
passadas a fio de espada. Assim também como todos os conquistadores de mundos
novos, rapidamente transformando-os em mundos velhos, destroçados, pilhados,
atormentados.
Daí que
não há somente o miserere da
carência, da pobreza, da desvalia na vida. Logicamente que a miséria é mais
reconhecida onde um povo sequer se sustenta no dia a dia, onde se alimenta do
barro da terra e qualquer grão é disputado com fúria e violência. Assim a
miséria africana, a miséria de famílias inteiras sem presente nem futuro, com
crianças esquálidas e famintas rastejando ou simplesmente caídas para a morte
certa. Assim também nas distâncias nordestinas, nas palafitas ao redor das
cidades, nos barrancos nas encostas dos morros.
A verdade
é que as misérias da carência e da necessidade seriam combatidas ou minimizadas
acaso houvesse desejo daqueles que detêm o poder. Aquelas pessoas que rastejam
famintas e esmolam o pão da existência merecem o reconhecimento e a dignidade,
pois não são miseráveis humanos. E muito podem ensinar sobre a humildade e o
verdadeiro amor no coração.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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