Rangel Alves da
Costa*
Nos
cordéis nordestinos de outrora, quando o cordelista fazia do verso da terra uma
lamentação, avistava-se nas páginas penduradas em barbantes nas feiras
interioranas: “Numa besta do Apocalipse, na caveira da morte que se achega, a
seca chega, a seca chega. Trazendo lança afiada à mão, logo encenando uma
tragédia grega, a seca chega, a seca chega. Lâmina feroz que decepa tudo, e no
colo a dor aconchega, a seca chega, a seca chega. Que fome danada é essa, que é
essa sede sedenta da pega? É a seca que chega, é a seca que chega...”.
Versos de
outrora, mas com os mesmos motes de agora. A seca de ontem, do passado antigo e
de todos os tempos, mais uma vez retorna às paisagens tão conhecidas. Eis que
novamente nos sertões nordestinos, principalmente nas distâncias sertanejas de
Sergipe, a seca reaparece com a aquela face ossuda e aterrorizante. Já não
chove há muito tempo, não há nenhuma esperança de chuva, e o que já se mostra é
um cenário de chão de coivara: cinzas espalhadas onde antes havia tufo de mato,
restos acinzentados onde antes havia uma esperança brotando da terra.
Segundo a
sabedoria sertaneja, poucas coisas na vida são mais certeiras que a morte e a
seca, só que aquela acaba de vez, enquanto esta vai definhando o homem, a terra
e o bicho a cada chegada. E também o sofrimento nas duas, mas sendo que a seca,
ao invés do luto e da lenta aceitação do desígnio, é de persistente e contínua
aflição, eis que vai se renovando quando o sujeito parecia já ter vencido o luto
da estiagem e do fim do rebanho de pasto e quintal.
A chegada
da seca possui a mesma feição desde os tempos imemoriais. Não há
desenvolvimento da região nordestina ou mecanismos de prevenção às estiagens
que consiga alterar a chegada dessa indesejada visitante. E vai chegando nos
sinais do tempo, no desaparecimento das nuvens prenhes, no abraço maior do sol
e no calor insuportável se abatendo sobre tudo. E depois as outras
consequências tão conhecidas.
As
esperanças de chuvas vão sendo adiadas a cada alvorecer. Quando abre a porta e
avista a barra, logo o sertanejo pressente dias cada vez mais difíceis. O homem
da terra conhece não só seu destino como sua sina. Destino é lutar para
sobreviver até que risque o relâmpago e ronque o trovão. E sina é saber que não
pode fugir das agruras tantas trazidas quando as chuvas cessam. Quando o bicho
começa a berrar de fraqueza e o menino chorar por falta de pão, então o
desalento se espalha na força do sol.
A seca
sempre chega e não há como fugir de sua visita. Por mais que surjam as ilusões
das trovoadas, das plantações, das colheitas, não demora muito e o que restou
da semeadura vai se transformar em cinzas. As esperanças de frutificar o pé de
milho, de feijão, de algodão ou de qualquer coisa que tenha sido fincada na
terra porque ainda molhada ou na expectativa de pingo d’água, sempre acabam
quando a barra deixa de dar seus sinais e as nuvens somem de vez lá do alto.
E a seca
já chegou ao sertão, e feia, voraz, faminta, assustadora. Antes mesmo que se
adentre no mundo sertanejo, as beiradas de estradas e horizontes já comprovam
os sinais de desolação e os tempos difíceis que já tomam conta dos campos
áridos, dos casebres de barro e cipó, das malhadas e das crias magras e
entristecidas. E quando maior a aproximação do mundo catingueiro e do mandacaru
maior a tristeza no olhar. Não há coração que não aperte e atormente perante a
face dantesca da natureza em leito de morte.
Ouvi de
uma sertaneja uma observação pertinente: ninguém mais avista sequer uma nuvem.
E está assim mesmo, impossível de se avistar uma só nuvem por toda a região
sertaneja. Desde as seis da manhã que o tempo abre e o sol já começa a
assustar. Acima de todos logo surge aquele sol imenso, com raios de lâminas
cortantes, com chama de fogo, sempre causando uma terrível sensação de fim de
mundo pelo calor. Com efeito, a temperatura se eleva a tal ponto que por todo
lugar a sensação de uma terrível fornalha.
É este sol
inclemente que definha o sertão a cada nova seca. É esta fornalha que desce do
alto e se espalha voraz que vai secando tanques, barreiros e açudes. É este
caldeirão chamejante que esturrica planta, vai dizimando as pastagens, queima a
folha e resseca o capim, emagrece a palma, vai tornando em deserto onde ainda
se avistava arbustos e os brotos da sobrevivência. Para piorar, em períodos
assim, de seca medonha, o sol nasce mais cedo e se põe quando a lua já começa a
brilhar. Por isso mesmo que a sensação ensolarada avança noite adentro e o
mesmo calor do dia vai fritando em plena madrugada.
O sofrimento
está no homem, na terra e no bicho, e basta uma caminhada por aquelas veredas para
uma ideia do clamor que se alastra pelo sertão. Logo nos arredores da cidade os
campos sem vida, os bichos procurando sombra debaixo das árvores desnudas, os
cestos vazios, as fontes sem água. E o homem silenciando seu sofrimento na fé
que não lhe abandona. Mas olha de canto a outro e não duvida: a seca chegou e
parece que quer levar o resto de tudo.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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