Rangel Alves da
Costa*
Quanto
mais as relações se diluem mais as amizades somem. Quanto mais ficam
desumanizados os corações mais os afetos arrefecem. Quanto mais as falsidades
tomam o lugar das verdades mais as confianças desaparecem. E no fim de tudo
também o fim das amizades. Nesse passo de distanciamentos e incredulidades,
somente os amigos secretos para a continuidade dos afetos.
Já faz
algum tempo que me sinto carente de amigos, principalmente os verdadeiros.
Penso em recorrer aos costumes de final de ano em busca de um amigo secreto, porém
não possuo mais círculo que me chame a participar. Noutros tempos, bastava
meter a mão e retirar o papelzinho embrulhado com o amigo da vez. Por ser
secreto, ninguém poderia sequer imaginar quem seria depois presenteado como
forma de reconhecimento da amizade.
Os tempos
são outros. Os costumes de amigos secretos continuam, mas mesmo a brincadeira
vai perdendo seu sentido de confraternização. Os amigos secretos de hoje não
esperam mais receber uma lembrancinha qualquer, um presentinho singelo, mas
algo que os distinga perante os demais. Algo assim como uma etiqueta famosa, um
adorno dourado, uma grife da moda. E eu não participaria da brincadeira por um
simples motivo: não posso sequer me presentear com o que imagino realmente
merecer.
Assim,
acaso pudesse lançar a mão num bilhetinho e surgir o amigo da vez, então este
teria que se contentar com o que talvez jamais esperasse receber. Nada do usual
seria presenteado, nada da moda seria concedido. Por consequência, ou ficaria
encantado pela escolha da lembrança ou silenciosamente se comprometeria em
nunca mais participar da brincadeira. E a mesma validade para o que eu tivesse
a receber, pois todo o contentamento estaria na simplicidade da recordação
recebida.
Eu não
pensaria duas vezes em escolher uma bela folha de papel envelhecido, desses
cuja reciclagem permite uma aparência artesanalmente antiga, e na sua face
inteira escrever com caneta tinteiro um poema famoso, talvez a sutileza de
Fernando Pessoa:
“Da minha
aldeia veio quanto da terra se pode ver no Universo.../ Por isso a minha aldeia
é tão grande como outra terra qualquer/ Porque eu sou do tamanho do que vejo/ E
não, do tamanho da minha altura.../ Nas cidades a vida é mais pequena/ Que aqui
na minha casa no cimo deste outeiro/ Na cidade as grandes casas fecham a vista
à chave/ Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu/
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar/ E
tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver” (Eu sou do tamanho do que
vejo).
Ou talvez
uma passagem bíblica. Sim, as mensagens bíblicas representam reencontro com a
espiritualidade, fortalecimento da alma, elevação do ânimo da vida. Mais que
isso, seria como forçar o presenteado a lançar o olhar perante palavras que
talvez desejasse desde muito encontrar. Palavras assim, como aquelas contidas
em Coríntios e que talvez já as tivesse ouvido através da música de Legião
Urbana:
“Ainda que
eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o
metal que soa ou como o sino que tine. E ainda que tivesse o dom de profecia, e
conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé,
de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria. E
ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda
que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me
aproveitaria. O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não
trata com leviandade, não se ensoberbece. Não se porta com indecência, não
busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal. Não folga com a
injustiça, mas folga com a verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo
suporta”. (1 Coríntios 13:1-7).
Certamente
que a força do amor animaria o presenteado à aceitação. Mas eu também poderia simplesmente
escolher outro presentinho inusitado. Uma tábua de madeira com seu nome forjado
no fogo. Ou ainda uma vasilha com água, areia e uma concha de mar. Ou talvez
uma imagem do Senhor na Cruz. Aquele sacrifício extremo de um homem pela
humanidade revela quanto o homem de hoje é merecedor de viver com amor, com paz
e fraternidade.
Ou um
abraço. Sim, ao invés de presente materializado daria simplesmente um abraço. E
pediria que deixasse de ser amigo secreto para ser somente amigo.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
2 comentários:
Acho que seria um presente lindo, e valioso!
Quanto mais a vida vai passando diante de nossos olhos, mais exigentes nos tornamos, por cohecer melhor o ser humano, cada vez menos humano. Quando às lembrancinhas de Natal, nada melhor do que saber que alguém se lembrou de nós, nem que seja com a ajuda de um papelzinho. Bom 2016 para você, Jurema Cappelletti
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