Rangel Alves da
Costa*
Daqui da
janela avisto a vida, mas não avisto o mundo. Daqui da janela avisto a estrada,
a rua, o caminhante, mas não o que estar por detrás da cortina e que se faz uma
realidade maior. Daqui da janela avisto pardais, mas não a natureza, as
borboletas, pássaros, colibris e avoantes. E assim porque esse umbral é apenas
um limite e não uma distância.
Mas
necessito dessa janela, desse umbral, desse limite. Recordo-me bem que minha
avó, logo ali atrás, sentada na velha cadeira de balanço de todo entardecer,
reencontrava o seu mundo através dessa janela e numa moldura menor do que vejo
agora. Ao sentar e solenemente – e tristemente e melancolicamente – mirar além
da janela não enxergava, contudo, nada adiante do que sua memória permitia.
Minha avó,
no seu cantinho escurecido de sala, olhava adiante da janela, porém pouco
importava o que avistava. Não lhe interessava mais o leiteiro, o lavadeira
passando com trouxa de roupa à cabeça, o menino vendendo cocada, o velho amigo
que passava lento e dando o boa tarde de todo dia. Nada disso lhe interessava.
Talvez sequer avistasse aquilo tudo, pois o seu olhar era sempre encoberto pelo
véu da memória.
O véu da
memória, tão fino e transparente, ao ser colocado perante a realidade acaba
ofuscando o presente. Assim sempre acontece. O que se avista em névoa tem pouca
importância. E talvez assim seja até melhor. Muito melhor não se ater às
misérias presentes, muito melhor não ter de suportar visões que nem parecem da
vida. O que permite o véu da memória é transportar a outras realidades, ao
passado, àquilo que o pensamento não permite que seja esquecido.
Minha avó
tinha razão em não querer avistar a realidade. O seu mundo passado era muito
melhor que aquele de mesmice e de nada, ainda que num tempo bem mais
interessante e verdadeiro do que agora. Minha avó também tinha razão em deixar
que o véu da memória ofuscasse o que estivesse adiante para trazer à mente o
que desejava recordar. E até o que não desejava, porém assim chegava pela
impossibilidade de filtrar as vivências passadas.
Por isso
mesmo, porque sentava na sua cadeira para recordar e não para vivenciar o mundo
ao redor, que minha avó se fazia criança, menina malina, moça sonhadora. E
trazia ao lábio aquele primeiro beijo daquela primeira boca que foi a única por
toda a vida. E trazia ao peito a dor da despedida num noite sem lua. E trazia
aos sentimentos o cheiro bom de café torrado, de pão de forno, de roupa limpa
estendida em varal. E trazia ao peito a solidão dos dias, mas também a alegria
dos netos e de suas traquinices pela casa.
Eram
saudades boas e tristes, amargas e alentadoras, mas todas permitindo força para
continuar existindo. Ora, já não significava senão pela que tinha sido, pelo
que tinha feito, pelo que tinha vivenciado. Assim pensava. E assim em todo
entardecer no seu cantinho de janela, na sua velha cadeira de balanço. O véu
aumentava ainda mais quando as lágrimas começavam a cair, quando tudo nublava
sem que ela se percebesse com os olhos tomados de um rio imenso: o rio da
memória, da saudade, da nostalgia, da recordação...
Não sento
à cadeira de minha avó. Ainda não. Preservo-a para o amanhã, talvez. Mas ao
entardecer, no ponteiro daquele relógio antigo, ponho-me debruçado no umbral da
janela e deixo que o mesmo véu da memória recaia sobre mim. Não quero o
presente, nada quero do agora, nego o que vejo e o que dizem que vi. Por mais
que avistem, meus olhos se negam a enxergar as insignificâncias, as afrontas,
as desumanidades, as vilezas espalhadas por todo lugar. Então o véu recai sobre
mim e deixo que o calendário da vida vá repassando folhas antigas.
Mas como
dói esse meu véu da memória. O que recordo sempre me chega como memórias de
fogo e água. Aqueles livros, aqueles escritos, aqueles sonhos, tudo rasgado
pelo tempo. Aquele amor, aquele compromisso, aquela esperança, tudo devorado no
tempo. Aquele menino que fui, aquele jovem que jurou ser soberano do mundo,
aquele caminhante em busca de seu reinado, tudo levado na ventania do tempo.
As
memórias surgem assim, chegam como fogo abrasador, como chamas e labaredas. E
queimam, ardem, chamejam por dentro. Quem dera encontrar o portal do ontem ou a
fresta do não realizado. Mas tudo impossível, por isso tudo queima, arde,
chameja. E depois da lágrima a dor se dissipando. Até que as memórias ressurjam
como fogo e sejam momentaneamente apagadas pelas correntezas dos olhos e do
lacrimejante coração.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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