Rangel Alves da
Costa*
Não havia
neblina nem luzes brilhando ao longe, porém sentia como se estivesse num clima
nova-iorquino de passagem de ano. É que seus olhos necessitavam avistar algo
além da escuridão da noite. Aproximou-se da janela para sentir os grãos gelados
nas mãos, mas logo recuou ante a voraz ventania. Depois retornaria àquela
paisagem sem vida.
O sopro
forte do vento fazia ecoar uma dolorosa canção. E em acordes insistentes
demais. Talvez um noturno desconcertado por um piano sem notas. As folhagens
rebentavam nos galhos e se lançavam pelo ar num murmúrio angustiante. Sem
réstia de luz ao longe, sem lua, apenas o negrume e o tilintar metódico do
velho relógio de parede.
No ano
passado havia sido muito diferente. Alguns familiares e amigos se reuniram para
brindar a despedida do velho calendário e abraçar o tempo novo surgido após a
meia-noite. Experimentou um Martini, uma taça de champanha e um espumante.
Sentiu-se como uma jovem em meio ao um festim da idade.
Assim que
os convidados se despediram, novamente a realidade tão antiga como a própria
vida. Os copos sem dono, as taças vazias, os pratos com restos, as sobras de
tudo, e a terrível sensação de que não mias voltariam para o abraço, as
felicitações, os brindes e as relembranças. E da janela entreaberta a canção
sem voz que não cessava de chegar no sopro do vento.
Tudo
parecido com agora. Só que agora muito mais triste, muito mais solitário, muito
mais melancólico e angustiante. Agora não havia garrafa sobre a mesa, comida no
forno, salgados e doces recobertos, bebida gelando, nada. E mais tarde nem uma
taça vazia ou um copo quebrado. E o telefone não tocava, a campainha permanecia
emudecida, apenas a ventania ecoando aquela velha e agonizante canção.
A
escuridão do mundo lá fora estava entristecida demais para ser avistada.
Novamente afastou-se da janela e foi acender uma vela. Trouxe para cima da mesa
um incensório e nele uma vara perfumada de alecrim. Talvez aquela chama
aromática, de profunda feição espiritual, trouxesse ao ambiente um pouco de
alegria e contentamento. Precisava de forças para olhar na direção do relógio.
Já quase
meia-noite e nenhuma esperança que, naquele avanço da hora, qualquer visitante
ou parente ali chegaria para um abraço. Porém uma ausência tão esperada quanto
o próprio tempo passando. A cada ano e os seus iam sumindo, se distanciando,
perdendo os vínculos fraternos que sempre unem os amigos e famílias.
Nas
paredes apenas retratos envelhecidos, nas pinturas apenas paisagens tristes e
naturezas-mortas, por cima dos móveis alguns porta-retratos insistentes em
permanecer por ali. E no restante um silêncio profundo numa noite ainda mais
escurecida que em outros dias. E o vento soprando aquela canção torturante.
“Que fiz
eu para viver assim, para estar assim? Nada faltou aos que aqui chegaram, nada
jamais foi negado aos que bateram à porta, nada fiz para amargar tamanha
solidão numa noite em que se deseja ao menos um abraço. É como se a vida fosse
nos tornando folhas mortas e vendavais fossem nos levando para longe dos que
tanto amamos. Folha de outono sou agora e amanhã talvez apenas os restos que o
vento recolherá do chão da existência e levará como pó, pela sina que em pó
tudo há de se transformar...”.
Meditava quase
chorando. Mas não segurou a lágrima quando olhou em direção ao relógio e os
ponteiros já iam avançando para se juntar na hora da meia-noite. Cinco minutos
apenas para um novo ano e ela ali tão velha e esquecida. Então foi até a janela
e pediu para o vento aumentar sua voz.
E ouviu
sua canção como se fosse a mais bela da vida. O toque da meia-noite, da
passagem do ano, encontrou-a em meio a uma valsa solitária sob um rio de
lágrimas.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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