SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

PASSAGEM DE ANO (UMA HISTÓRIA DE SOLIDÃO)


Rangel Alves da Costa*


Não havia neblina nem luzes brilhando ao longe, porém sentia como se estivesse num clima nova-iorquino de passagem de ano. É que seus olhos necessitavam avistar algo além da escuridão da noite. Aproximou-se da janela para sentir os grãos gelados nas mãos, mas logo recuou ante a voraz ventania. Depois retornaria àquela paisagem sem vida.
O sopro forte do vento fazia ecoar uma dolorosa canção. E em acordes insistentes demais. Talvez um noturno desconcertado por um piano sem notas. As folhagens rebentavam nos galhos e se lançavam pelo ar num murmúrio angustiante. Sem réstia de luz ao longe, sem lua, apenas o negrume e o tilintar metódico do velho relógio de parede.
No ano passado havia sido muito diferente. Alguns familiares e amigos se reuniram para brindar a despedida do velho calendário e abraçar o tempo novo surgido após a meia-noite. Experimentou um Martini, uma taça de champanha e um espumante. Sentiu-se como uma jovem em meio ao um festim da idade.
Assim que os convidados se despediram, novamente a realidade tão antiga como a própria vida. Os copos sem dono, as taças vazias, os pratos com restos, as sobras de tudo, e a terrível sensação de que não mias voltariam para o abraço, as felicitações, os brindes e as relembranças. E da janela entreaberta a canção sem voz que não cessava de chegar no sopro do vento.
Tudo parecido com agora. Só que agora muito mais triste, muito mais solitário, muito mais melancólico e angustiante. Agora não havia garrafa sobre a mesa, comida no forno, salgados e doces recobertos, bebida gelando, nada. E mais tarde nem uma taça vazia ou um copo quebrado. E o telefone não tocava, a campainha permanecia emudecida, apenas a ventania ecoando aquela velha e agonizante canção.
A escuridão do mundo lá fora estava entristecida demais para ser avistada. Novamente afastou-se da janela e foi acender uma vela. Trouxe para cima da mesa um incensório e nele uma vara perfumada de alecrim. Talvez aquela chama aromática, de profunda feição espiritual, trouxesse ao ambiente um pouco de alegria e contentamento. Precisava de forças para olhar na direção do relógio.
Já quase meia-noite e nenhuma esperança que, naquele avanço da hora, qualquer visitante ou parente ali chegaria para um abraço. Porém uma ausência tão esperada quanto o próprio tempo passando. A cada ano e os seus iam sumindo, se distanciando, perdendo os vínculos fraternos que sempre unem os amigos e famílias.
Nas paredes apenas retratos envelhecidos, nas pinturas apenas paisagens tristes e naturezas-mortas, por cima dos móveis alguns porta-retratos insistentes em permanecer por ali. E no restante um silêncio profundo numa noite ainda mais escurecida que em outros dias. E o vento soprando aquela canção torturante.
“Que fiz eu para viver assim, para estar assim? Nada faltou aos que aqui chegaram, nada jamais foi negado aos que bateram à porta, nada fiz para amargar tamanha solidão numa noite em que se deseja ao menos um abraço. É como se a vida fosse nos tornando folhas mortas e vendavais fossem nos levando para longe dos que tanto amamos. Folha de outono sou agora e amanhã talvez apenas os restos que o vento recolherá do chão da existência e levará como pó, pela sina que em pó tudo há de se transformar...”.
Meditava quase chorando. Mas não segurou a lágrima quando olhou em direção ao relógio e os ponteiros já iam avançando para se juntar na hora da meia-noite. Cinco minutos apenas para um novo ano e ela ali tão velha e esquecida. Então foi até a janela e pediu para o vento aumentar sua voz.
E ouviu sua canção como se fosse a mais bela da vida. O toque da meia-noite, da passagem do ano, encontrou-a em meio a uma valsa solitária sob um rio de lágrimas.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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