*Rangel Alves da
Costa
Desejar
viver bem, ter o melhor e nada faltar, é perspectiva justa que todo mundo deve
ter. Viver bem, poder acrescer sempre mais e ainda realizar tudo aquilo que
deseja, igualmente se torna merecimento a todo aquele que pela luta chega ao
patamar da bonança. Em situação tal, onde o preço da feira ou a conta do almoço
não causa nenhum desfalque, compreensível que possa ter sobre a mesa o melhor e
mais variado prato.
Ora, uma
gente assim pode muito bem chegar num restaurante chiquê e mandar descer o que
quiser do cardápio, mesmo que sequer saiba o que significa o nome do prato,
pois geralmente noutra língua. Então o garçom vai trazendo tiquinhos até o
momento do prato principal, e este consistindo apenas numa pequena porção
enfeitada no meio da porcelana, tendo ao lado um filete de carne ornado com um
raminho de folha. Não come tudo, porque é feio a burguesia esvaziar o prato,
permanece com fome e paga uma verdadeira fortuna.
Também não
é diferente nas refeições à própria mesa. Come-se pouco, quase nada, e uma
comida sem gosto, sem sustança, sem encher barriga. Uma taça de água, outra de
vinho, um queijo importado, um fruto do mar, um naco de carne, mas tudo tão
pouco que nem parece comida de mesa. E come-se assim, tão pouco e tão mal,
pelas exigências do próprio status. Tem de manter a elegância, a postura, a
finura, e tudo devendo começar pela moderação nos hábitos alimentares.
Mas sente
fome, fraqueza, uma vontade danada de se esbaldar perante uma comida farta,
muita, comendo sem etiqueta e se servindo de mais. Então sente saudade de um
pirão de mulher parida, de uma galinha de capoeira bem gorda, de um sarapatel
de porco, de um mocotó bem visguento, de uma panelada de carne de gado
misturado com carne de porco, de fígado grosso acebolado, de carne na brasa, de
um churrasco completo, de uma feijoada feita no dia anterior. E comer com
voracidade, gulosamente, se servindo com a mão e não tendo vergonha de se
lambuzar.
Contudo, pensando
bem, há uma relação tanto de proximidade como de distanciamento entre aquele
que muito tem, porém quase nada come por estética e vaidade, e aquele que pouco
ou quase nada tem, mas come tudo que consegue por necessidade. Nos dois há uma
pobreza alimentar, sem dúvida. Enquanto um come mal porque assim deseja, o
outro come muito mal porque lhe falta comida. A riqueza se torna pobre por
desejo próprio e a pobreza deseja a fartura sobre a mesa. Quando o alimento
está à frente dos dois, não há que duvidar que somente o necessitado saiba
valorizar cada porção e cada sabor.
Somente
aquele que passa fome, que passa dias e mais dias com o fogão de lenha apagado
e a panela vazia, sabe valorizar o alimento conseguido depois de tanto
sofrimento. O grão, o pedaço, o pacote, o quilo, o pouquinho, o tantinho e até
o restinho, tudo se torna de indescritível importância ao desvalido. Somente
ele conhece a dor de ouvir um filho chorar com fome e não ter sequer um pedaço
de pão. Somente ele sabe o martírio de se ter diante da hora do alimento e nada
restar para ser colocado à mesa ou mesmo no fundo de um prato de estanho.
Há de se
conhecer, de sentir, de ser forte para não chorar. Um casebre de barro batido,
sustentado em garrancho e cipó, e lá dentro três ou quatro, cinco ou seis,
desvalidos de quase tudo, principalmente do alimento do dia a dia. Sonha-se com
uma tripa de porco, com um pedaço de toucinho, com uma fatia de bucho, com
qualquer coisa que possa enganar a fome. Sem o preá, sem o nambu ou a codorna,
sem o teiú ou qualquer caça de mato, não há esperança que chegue à boca em
forma de comida. Daí o fogo apagado, a panela esquecida num canto, o prato
vazio e a mesa coberta de olhares aflitos. E famintos.
E há falta
de tudo mesmo. Quando não tem uma coisa, porém resta um tantinho de outra,
ainda se dá um jeito, ainda é possível enganar a fome da meninada. Mas de
repente não há mais farinha de milho, farinha de mandioca, arroz, café e
açúcar. O quilo de carne só deu para dois dias, os outros quilos e pacotes se
foram no mesmo passo. Passa um calango e o maiorzinho corre atrás. Depois
retorna com o bicho estatelado. O pai, com o coração apertado demais diante da
situação, não encontra outra solução senão fazer o fogo abrasar.
Há uma
fome tal, tão feia e voraz, que não pode negar qualquer comida. Come-se,
verdadeiramente, do que se tem no prato, sem escolhas ou cara feia. O menino do
calango assado não gostaria de mordiscar seu amiguinho de meio de mato. O pai
de família, acostumado ao trabalho para dar pão à família, não vai bater em
porta de ninguém com a mão estendida. Contudo, o coração se aperreia e os olhos
marejam toda vez que vai chegando a hora do alimento e nada há para oferecer
aos pequeninos.
Diante do
prato vazio, do fogão apagado, daquele olhar entristecido no canto da parede,
só mesmo Deus para encher a colher. Esta pode não estar cheia, mas a
sobrevivência vai sendo garantida como verdadeiro milagre.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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