Rangel Alves da
Costa*
Já são
mais de sete horas da noite. Um pouco mais. Depois de alguns poucos fogos do
São João, agora o silêncio na rua nua, vazia, triste, sonolenta. Mas muito mais
por causa da chuva do que qualquer outra coisa. Chuviscou o dia inteiro, e
agora a chuvarada se fez mais forte. Sempre acontece assim ao anoitecer dos
invernos e dos dias de nuvens prenhes.
Ouço a
chuva lá fora enquanto escrevo. Nunca faço assim, pois busco o maior silêncio
possível enquanto rabisco pensamentos e memórias, mas hoje me vejo dividido em
dois sons diferentes: da chuva descendo lá fora e da música clássica chegando
da vitrola na estante logo atrás. A chuva ora mais forte ora mais fraquejante,
a música apenas ouvida, baixinha, como se estivesse distante.
Contudo, impossível
escrever em meio à chuva e à música clássica. Tal receita é, comprovadamente,
perigosa demais aos sentimentos. Chuva e música invadem o âmago, o espírito, a
alma, como se desejassem possuir o ser inteiro. Seus acordes fazem voar, fazem
chorar, fazem sorrir, fazem delirar. Seus suaves ecos trazem nostalgias,
recordações, lembranças vivas e tantas outras que ressurgem para afligir.
Na noite,
os pingos caindo, a rua molhada, o asfalto negro em espelho d’água, a ternura
jamais imaginada noutro instante do dia. A rua da velocidade, do barulho, da
gente passando, da gente correndo, da algazarra do dia a dia, se transforma em sentimentalista
assim que chove cai. As portas fechadas, as pessoas recolhidas, os caminhos
vazios, tudo faz aumentar a sensação de uma paz aflitiva, de uma meiguice
dolorosa, de uma alegria entristecida.
A chuva na
noite tem o dom de provocar tudo isso. Como uma doença que sempre desperta após
o entardecer, assim as sensações afloradas quando a chuvarada começa a cair
debaixo do negrume da noite. Sem lua, apenas a luz amarelada dos postes
refletindo os pingos que caem, não há olhar que não se faça poeta, não há
coração que não se aflija, não há pensamento que não se encha de recordações. E
todo o ser se entrega à magia do noturno molhado, se derramando na rua e
escorrendo por toda a alma.
A chuva em
si já é melodia. Através dela ouve-se a sonata, a sinfonia, o prelúdio, a valsa
vienense, o piano em viagem pelos ares, o violino em voo distante. Na rua
molhada um grande salão, ou apenas uma sala escurecida com candelabros e
incensos, e em meio a tudo, sobressaindo-se a toda paisagem e a tudo que surja,
a doce música, a bela música da chuva, uma orquestra de cordas e de sensações.
Vejo-me
assim. Lá fora a doce música, a orquestra se derramando, e aqui dentro,
pertinho de mim, a outra música nascida dos grandes mestres. Imensa admiração
por Bach, Chopin, Mozart, Beethoven, Vivaldi, Lizst, Ravel, Brahms, Haydn, Wagner,
Stravinsky, Paganini, Mahler, mas em noturnos assim, como o chuvoso de agora,
guardo preferência por Strauss e suas famosas valsas, Tchaikovsky e sua
belíssima Valsa do Lago dos Cisnes, mas principalmente Offenbach. Não há como
não se encantar com sua Barcarolle, intermezzo de Os Contos de Hoffmann.
Em noites
assim, ouvir Barcarolle é um navegar, é um voar, é um distanciar-se de tudo e
continuar planando pelos sentimentos devassados em sorrisos e lágrimas, em
dores e alegrias, em abraços e beijos e acenos de adeus. Barcarolle é barca que
se alonga águas adentro do espírito, é nau que singra nas distâncias da alma. E
nesse azul imenso, em busca de uma ilha qualquer jamais encontrada, navegando
vou ao soprar da memória.
Mas a
música e a chuva me impediram de prosseguir com o texto. Por motivos óbvios,
fechei os olhos e deixei que tudo fluísse ao seu açoite e remanso. Acordei umas
três da madrugada e a chuva ainda caindo como na noite anterior. E a mesma
música em mim, dentro de mim. Até que a manhã desperte de vez e a rua molhada
deixe de ser poesia para ser somente caminho.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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