*Rangel Alves da
Costa
Agora
chove. Sempre chove. Tudo sempre parece nublado, escurecido, carregado demais.
Ou vazio demais. Ainda hei de perguntar ao sol se não se cansa de nascer e
morrer todos os dias. Ainda hei de perguntar a lua se não se cansa de surgir
alegre e depois partir tristonha todos os dias. Por que já me cansei de tudo.
Sei o que
é reclusão sem estar aprisionado numa cela ou entre grades. O pior é ter a
porta, e uma porta que pode ser aberta a qualquer momento, e não querer sair.
Dizem que depois da porta e da janela sempre há uma vida chamando a viver. A
liberdade permite seguir por onde quiser. Mas meus passos não seguem a lugar
algum.
Não tenho
mais papel nem lápis. Os poemas beberam veneno, as cartas cortaram os pulsos.
Não tenho mais vela para acender. Candeeiro sem gás e sem lâmpada no bico de
luz. Também já não sei se tenho qualquer coisa a escrever. Não escrevo mais
sobre ilusões, sobre impossibilidades, sobre devaneios de inocente coração. Não
mais amor, nada mais sobre amor. O jardim é belo, mas todas as flores morreram.
Antigamente
um passarinho cantava sobre o umbral da janela. E pela fresta uma borboleta
entrava para mostrar sua cor. Mesmo com pouca luz, esvoaçava deixando rastros de
arco-íris. Mas tudo sumiu. Um dia imaginei que colocando flor de plástico
dentro de copo d’água ela permaneceria viva. A borboleta um dia quis beijar sua
pétala e entristeceu. E a flor empoeirou e perdeu a cor, depois ressecou e
morreu perante o meu olhar.
Não me
recordo mais da última vez que abri a janela. Era noite, isso eu consigo
lembrar. Mas a lembrança vem do sopro diferente da ventania naquela noite. Foi
a primeira vez que ouvi canção e lamento vindos do vento. Noite sem lua,
tristonha, e de repente o açoite batendo à janela. Folhas secas ainda passavam,
as folhagens pareciam gritar, mas em seguida uma canção sem voz foi chegando no
sopro. Quanto mais o vento soprava mais a canção ecoava em mim. Quando tudo
cessou e fechei a janela, então ouvi um lamento do lado de fora. Era o último
sopro chorando saudade.
Talvez,
sem eu perceber, um sopro de vento tenha entrado pela janela assim que resolvi
fechá-la. De vez em quando ouço a mesma canção, e por noites inteiras a canção
ecoa em minha solidão. E depois o lamento, o canto triste, trazendo mais
tristeza e dor. Por isso que passei a desejar um vento novo e uma nova canção,
sem lamento ou dor, mas sempre me esqueço de abrir a janela quando a noite
chega e a ventania vem fazendo caminho.
Não sei
mais quantas vezes lancei mão do embornal para abrir a porta e seguir estrada.
Jogo dentro rabiscos e escritos e depois sempre deixo a partida para outro dia.
O embornal está num canto do chão, aberto, esperando somente que eu decida
partir. Mas creio que nem dele irei precisar. Basta-me o chinelo de dedo e a
roupa de cima, mesmo já envelhecida demais. Partirei e seguirei sem olhar pra
trás. Talvez aquela borboleta venha se despedir e já me encontra distante, um
vulto na estrada, uma sombra que some.
Encorajo-me
a viver assim. Seguindo, seguindo. Caminhando, caminhando. Sempre, e sempre
mais, e por caminhos esquecidos e veredas desconhecidas, rumo ao próximo
destino ou ao nunca chegar. Comer dos frutos do mato, beber da água da fonte,
descansar sobre a relva, adormecer debaixo da copa das grandes árvores. Sem
palavra à boca, sem ninguém para falar, talvez até eu me esqueça que exista o
verbo. Também não será necessário ante o que o meu passo e o meu olhar desejam.
Avisto-me
como aquele que vai porque deseja ir. No clarão do sol, entre névoas e brumas,
debaixo da noite, no rastro da lua. Ouvir sinos distantes, orar para um Deus
ainda vivo, tecer um rosário de pedras e de fé. Por que a solidão não afasta a
fé e nem se distancia de Deus. E é ele a companhia que nunca se afasta, ainda
que de vez em quando a angustiada voz pronuncie: Eli, Eli, lama sabactani? Ou
Deus, meu Deus, por que me abandonaste?!
Fecho o diário
da solidão por que nada mais há dizer. Tudo escrito no pensamento, pois sem
folha e sem lápis. A noite avança e já é madrugada longa. A insônia me faz
procurar a lua pela fresta. Ouça a canção do vento. Sei que logo chegará o
lamento. E eu não queria chorar, eu não queria sofrer.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário