SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 16 de junho de 2016

CHEIRO BOM DO PASSADO


*Rangel Alves da Costa


Nada contra o perfume do presente ou o aroma dos modismos e outras aceitações atuais, mas nada comparável ao cheiro bom do passado. Nas coisas antigas uma fragrância boa, um bálsamo que fortalece a alma e torna cheirando a flor do campo toda a vida.
Cheiro de mastruço do velho quintal. As mãos calejadas maceravam as folhas, esmagavam as raízes e faziam subir pelo ar um perfume de mistério antigo, de receitas tão envelhecidas como as próprias enfermidades em busca de cura.
Cheiro bom de hortelã pisada, de folhas soltas despejadas na água fervente. Os olhos turvos conhecendo o tempo de fervura, nem mais nem menos que era para não retirar do chá o segredo da terapia medicinal. E assim os ares antigos sendo purificados pelos olores vindos dos quintais, das plantas medicinais que quase não existem mais.
Cheiro bom de amanhecer, pois perfumado a cuscuz ralado e preparado no fogão de lenha, cujo cuscuzeiro grande era sempre coberto com pano limpo esbranquiçado. Não demorava muito, assim que o pano começava a suor, e pelo ar ia subindo a névoa cheirando a milho verdoso, de sumo apetitoso e grão recheado de vida.
Cheiro bom de tripa de porco estendida na grelha por cima das brasas. Tripa já tomada de sol, já defumada pelo tempo e vento, mas despejando gordura assim que o fogo lhe comece a tostar. E depois, assim que ficava no ponto de assada, bastava jogar por cima da farinha seca despejada no prato de estanho. Não havia coisa melhor quando a boca da noite chegava e a fome apertava.
Um cheiro bom de café torrado, pisado em pilão e feito em chaleira antiga e na boca abrasada do fogão de lenha. Não havia perfume mais apetitoso, saboroso e chamativo do que do café antigo. O pilão batia, a mão despejava na peneira, o pó se espalhava na gamela, para em seguida ser derramado já na água fervente. Num segundo e o aroma do café tomava conta de tudo, desde o quintal à sala da frente, desde a vizinhança ao mundo ao redor. E depois o bule ia derramando na xícara a porção negra e olorosa daquela mais pura delícia.
Um cheiro bom de preá assado na brasa, de toucinho de porco, de carne do sol, de qualquer coisa que saísse dos varais e fosse servir de alimento no amanhecer ou anoitecer. Quando a fumaça abrandava e as brasas chegavam a crepitar de tanto queimor, então os nacos de carnes sertanejas eram colocados para tornar o cheiro da lenha em perfume tão conhecido. Quem passasse na estrada adiante e sentia o aroma, logo sabia que a mistura da farinha ou do cuscuz já estava em ponto de ser servida.
Um cheiro bom de quintal. Sim, porque os quintais antigos possuíam múltiplos aromas, variados perfumes, indefinidas fragrâncias. Quintais cheios de plantas, de árvores frutíferas, de fogão de lenha crepitando, de pilão sendo batido, de comida fervendo em panela de barro, de roupa limpa no varal, de moça bonita indo contar estrelas, de cachimbo aceso pela velha senhora, de rapé bem preparado pelo dono da casa, de cachaça com casca de pau ali sendo sorvida embaixo da lua grande.
Um cheiro de goiaba madura, de mamão pinicado pelo beco do passarinho, de pinha gorda já querendo desabar do pé, de umbu caído pelo chão no meio da noite, de jabuticaba e seu aroma doce e apetitoso. Aquele cheiro de verde tomando conta da mataria um pouco além do cercado, ou o aroma entristecido das folhas secas e galhagens tortas em épocas de estiagens. Mas mesmo assim o cheiro novo e gostoso do amanhecer e seus cantos passarinheiros e o perfume respingado de memórias e saudades quando chegava o anoitecer.
Um cheiro bom de chuva caindo sobre a terra e levantando no ar aquele aroma inconfundível: cheiro de barro molhado que é cheiro de esperança, de vida, de renascimento. E depois o cheiro de chuva, o cheiro de lama, o cheiro de correnteza e enxurrada, como num frasco de perfume que se quebra e vai espalhando fragrância boa por todo lugar. E ante a chuvarada, o homem da terra logo sentindo o cheiro do milho verde, da abóbora, da melancia, do melão coalhada, do feijão, do algodão em flor. E como se sentia bem sentindo tanto perfume, pois a vida sempre dependente do aroma brotando do chão.
Um cheiro de coisas velhas, de coisas antigas, de antiguidades do coração. Coisas que passaram ou não existem mais, mas que continuam com persistente fragrância. Cheiro de querosene no velho candeeiro, de pavio sendo queimado depois do anoitecer. Cheiro de vela queimando ao redor do oratório e seu céu e santos, no cantinho escurecido do quarto. Cheiro de barro de parede, de ripa e cipó, de palha seca tomando o lugar do telhado. Cheiro de chá e de bolo de milho, de fogueira acesa na malhada e espiga de milho por riba. E lá em cima a lua derramando seu perfume estrelado sobre vidas tão singelas.
Assim o cheiro bom do passado. Um frasco que foi secando, mas cuja essência, que é raiz e história, permanece na memória de todo aquele que não se esquece de suas flores.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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