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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 21 de junho de 2016

OS COLIBRIS NÃO VOLTAM MAIS


*Rangel Alves da Costa


Há instantes na vida onde os jardins são sempre de outono, a brisa do entardecer cantarola tristezas, as paisagens ficam acinzentadas e os colibris não voltam mais. Mesmo com jardins floridos, brisas suaves e perfumadas, paisagens exuberantes e colibris voejando ao redor, nada parece existir desse jeito.
As alegrias florescem a vida, as manhãs e noites, os passos da existência. As esperanças boas renovam os ânimos, fortalecem o espírito, chamam ao renascimento. O amor então, que é tudo e sobre tudo age como fermento, açúcar e sal. São desejos permanentes no ser que cheguem e permaneçam as alegrias, as esperanças e o amor com seus ingredientes essenciais. Mas há instantes em que se olha pela janela e não se avista sequer a presença do voo de um colibri.
Em instantes assim tem-se a certeza que os colibris não voltam mais. Ora, mas o jardim é primaveril, está florido, cheio de aroma e perfume, exalando paz e contentamento. Borboletas, beija-flores, pássaros matinais, folhagens em festa, tudo se faz presente adiante e pelos arredores. Da janela e além toda essa pujança, essa paisagem em canção e flor, porém nada que brilhe e conforte o olhar, nada que traga alegria, nada que se mostre como um despertar ante tanta beleza.
Tempo, tempo, eis o senhor do ontem e do hoje, e tudo. Tamanha força possui que vai tingindo o olhar de uma penumbra tristonha, vai tornando o sorriso num laivo de melancolia. É como se os anos fossem emoldurando o ser e deixando somente a feição imóvel do passado. Sempre um triste retrato quando assim acontece. A pessoa quer ser e viver seu momento, quer vivenciar seus prazeres e felicidades, mas nunca vai além da recordação do passado. Neste, aparentemente, a única certeza de ter sorrido, vivido, amado.
O velho relógio de parede já não bate mais. O calendário parece ter esquecido que novos dias e novos anos foram surgindo. E tudo amarelado, estático, empoeirado pelo esquecimento que a vida existe em percurso, em passo, em caminhada. Como numa casa, apenas a porta dos fundos tem serventia, e além dela o ontem e o que pela estrada ficou, mas continuam avistados como se outra coisa não existisse para se viver.
Uma casa rodeada de jardim, de flores, de natureza, de voos e coloridos, de canções e cantos, de sopros perfumados e folhagens em valsas, mas o oposto da porta da frente e adiante, na varanda, na sala, nos quartos. Eis o silêncio profundo, a solidão mais profunda, o entristecimento mais doloroso. Sombras e restos mortos, escuridões e fantasmas antigos, espectros do que se chamou ao convívio.
Flores de plástico empoeiradas, retratos tortos pelas paredes, baús entreabertos e cartas e relicários espalhados ao chão. Uma cadeira de balanço rente à janela e alguém que parece viver. Nenhuma vela acesa perto do oratório, uma bíblia sem reza ou clemência, um livro aberto num canto de sofá e letras que parecem chorar: “Quando quis deixar de viver, ela não procurou morrer. Quando quis falecer em vida, ela simplesmente fechou a porta da frente e abriu a janela. Mas da janela nada avistava de realidade, apenas o que desejava enxergar: dentro de si e para os seus tormentos. E assim definhava, assim morria porque queria...”.
No livro aberto, a vida inteira, o resumo e síntese de uma escolha de vida. A ficção tornada realidade por desejo próprio. Ou haveria motivações para ser assim, ou todo aquele sofrimento, solidão e rejeição a todo o viver, encontraria justificativa num sofrimento maior e desconhecido pelos demais? Tudo um talvez. Existem razões que a própria razão desconhece. Não se julga o outro pelo que aparenta ser, eis que se desconhece a íntima dor e a íntima alegria em cada ser.
Assim ela vivia. Abria a janela, recordava, entristecia e chorava. Os colibris planavam no ar, beijavam as flores, faziam festa ante seu olhar. Os pássaros queriam um sorriso, um gesto de contentamento. Mas era como se nada acontecesse, como se nada existisse. Mas eles insistiam. Até que a janela nunca mais abriu. E os colibris se viram sem flor e partiram. Os colibris não voltam mais.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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