*Rangel Alves da
Costa
Há
instantes na vida onde os jardins são sempre de outono, a brisa do entardecer
cantarola tristezas, as paisagens ficam acinzentadas e os colibris não voltam
mais. Mesmo com jardins floridos, brisas suaves e perfumadas, paisagens
exuberantes e colibris voejando ao redor, nada parece existir desse jeito.
As
alegrias florescem a vida, as manhãs e noites, os passos da existência. As
esperanças boas renovam os ânimos, fortalecem o espírito, chamam ao renascimento.
O amor então, que é tudo e sobre tudo age como fermento, açúcar e sal. São
desejos permanentes no ser que cheguem e permaneçam as alegrias, as esperanças
e o amor com seus ingredientes essenciais. Mas há instantes em que se olha pela
janela e não se avista sequer a presença do voo de um colibri.
Em
instantes assim tem-se a certeza que os colibris não voltam mais. Ora, mas o
jardim é primaveril, está florido, cheio de aroma e perfume, exalando paz e
contentamento. Borboletas, beija-flores, pássaros matinais, folhagens em festa,
tudo se faz presente adiante e pelos arredores. Da janela e além toda essa
pujança, essa paisagem em canção e flor, porém nada que brilhe e conforte o
olhar, nada que traga alegria, nada que se mostre como um despertar ante tanta
beleza.
Tempo,
tempo, eis o senhor do ontem e do hoje, e tudo. Tamanha força possui que vai
tingindo o olhar de uma penumbra tristonha, vai tornando o sorriso num laivo de
melancolia. É como se os anos fossem emoldurando o ser e deixando somente a feição
imóvel do passado. Sempre um triste retrato quando assim acontece. A pessoa
quer ser e viver seu momento, quer vivenciar seus prazeres e felicidades, mas
nunca vai além da recordação do passado. Neste, aparentemente, a única certeza
de ter sorrido, vivido, amado.
O velho
relógio de parede já não bate mais. O calendário parece ter esquecido que novos
dias e novos anos foram surgindo. E tudo amarelado, estático, empoeirado pelo
esquecimento que a vida existe em percurso, em passo, em caminhada. Como numa
casa, apenas a porta dos fundos tem serventia, e além dela o ontem e o que pela
estrada ficou, mas continuam avistados como se outra coisa não existisse para
se viver.
Uma casa
rodeada de jardim, de flores, de natureza, de voos e coloridos, de canções e cantos,
de sopros perfumados e folhagens em valsas, mas o oposto da porta da frente e
adiante, na varanda, na sala, nos quartos. Eis o silêncio profundo, a solidão
mais profunda, o entristecimento mais doloroso. Sombras e restos mortos,
escuridões e fantasmas antigos, espectros do que se chamou ao convívio.
Flores de
plástico empoeiradas, retratos tortos pelas paredes, baús entreabertos e cartas
e relicários espalhados ao chão. Uma cadeira de balanço rente à janela e alguém
que parece viver. Nenhuma vela acesa perto do oratório, uma bíblia sem reza ou
clemência, um livro aberto num canto de sofá e letras que parecem chorar:
“Quando quis deixar de viver, ela não procurou morrer. Quando quis falecer em
vida, ela simplesmente fechou a porta da frente e abriu a janela. Mas da janela
nada avistava de realidade, apenas o que desejava enxergar: dentro de si e para
os seus tormentos. E assim definhava, assim morria porque queria...”.
No livro
aberto, a vida inteira, o resumo e síntese de uma escolha de vida. A ficção
tornada realidade por desejo próprio. Ou haveria motivações para ser assim, ou
todo aquele sofrimento, solidão e rejeição a todo o viver, encontraria
justificativa num sofrimento maior e desconhecido pelos demais? Tudo um talvez.
Existem razões que a própria razão desconhece. Não se julga o outro pelo que
aparenta ser, eis que se desconhece a íntima dor e a íntima alegria em cada ser.
Assim ela
vivia. Abria a janela, recordava, entristecia e chorava. Os colibris planavam
no ar, beijavam as flores, faziam festa ante seu olhar. Os pássaros queriam um
sorriso, um gesto de contentamento. Mas era como se nada acontecesse, como se
nada existisse. Mas eles insistiam. Até que a janela nunca mais abriu. E os
colibris se viram sem flor e partiram. Os colibris não voltam mais.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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