*Rangel Alves da
Costa
Navegando
pela internet, eis que numa rede social encontrei um vídeo de uma comunidade
batendo feijão à moda antiga. Talvez a filmagem fosse antiga mesmo, porém agora
recuperada para mostrar esse ofício tradicional do mundo interiorano. E juro
que me bateu uma saudade danada. E também tristeza.
Logo me
veio à memória as malhadas, calçadas e quintais sertanejos, cobertas de feijão
para secar ao sol, com aquelas vagens devidamente espalhadas, para depois serem
juntados e batidos. Como os feijões chegavam das roças ainda em cascas úmidas e
amolecidas, necessário que fossem colocados para secar, durante dois ou mais
dias, até estarem em ponto de saírem da casca no sacolejo do bate-bate.
No vídeo, várias
pessoas de uma comunidade estão ao redor de um amontoado de feijão em casca e,
com pedaços de paus às mãos e panos sobre a boca e nariz, batem numa cadência
tal que mais parece um ritual produzido de geração a geração. E é mesmo, pois
desde as mais velhas raízes familiares que o feijão era batido da mesma forma.
Bate-se por cima, segue-se adiante para que outro venha na mesma batida.
A cada
batida a poeira da casca vai se espalhando, subindo em nuvem empoeirada,
lançando-se pelos arredores. Enquanto as cascas se separam dos grãos, aquelas
ficam por cima enquanto estes vão descendo e se amontoando abaixo. Quando o
serviço é dado por feito, afastam-se de cima as cascas esmigalhadas, como
separando a bagaceira do caldo, e o que se avista por baixo é o feijão novo e
graúdo.
Contudo, o
serviço não acaba aí, pois após a batida ainda muita sujeira das cascas fica
acumulada entre os grãos. Então se inicia outro processo tão antigo quanto a
própria batida: a peneiragem. E esta consiste apenas em separar os grãos das
impurezas e restos das cascas batidas. Mas nem sempre tal procedimento se dá
logo após a batida, pois é comum que as comunidades prefiram realizar a
peneiragem nos quintais ou em ambientes onde o pó não avance sobre pessoas ou
residências.
Numa
peneira grande, na largura dos braços abertos, os grãos são colocados e
sacolejados. Sacudidelas estas que exigem maestria, cuidado, ofício de
aprendizado, de modo que ao subir pelo ar o feijão não desande a outro destino.
Enquanto as sujeiras e o pó vão descendo pelos furos e se acumulando ao chão,
os grãos vão ficando limpos e prontos para a ensacagem. E assim o ato vai se
repetindo pelas mãos de muitas pessoas, às vezes da família inteira, bastando o
cuidado de se proteger contra o pó que faz festa pelo ar.
Não raro
que a batida envolva verdadeira festança, acaso seja muito o feijão a ser
batido. Os amigos se achegam dispostos a ajudar, mas também saborear uma
panelada, um mexido, uma feijoada, tudo feito em fogão de lenha e em quantidade
de batalhão. Tudo mundo ajuda, todo mundo colabora com um tiquinho disso e
daquilo. Também não pode faltar a pinga, a cachaça, a legítima casca de pau.
Ora, o trabalho é duro, exigindo muito esforço, e por isso mesmo o queimor do
sol e o cansaço são amenizados com uma boa relepada.
As
mulheres também bebem e se afogueiam ainda mais, e são elas que começam a puxar
os cantos da batida do feijão e logo são acompanhadas por todos, como num coral
ofegante, suado, cheio de exasperação. A cada levantada do porrete uma voz, a
cada descida outra, e assim continuamente a cada canto. E cantos enraizados,
hereditários, nascidos de outros e velhos tempos perante o mesmo ofício. Também
só cantados quando o povo reunido na batição.
Euflosina,
com a cabeça quase toda enrolada por causa das fuligens, ainda assim entoa com
voz alta e bonita: “Quando o trovão trovejou e o pingo grosso pingou, a terra
gole d’água tomou e logo nasceu o que se plantou. Bate que bate o feijão, bate
sem parar meu irmão, é feijão pra panela vazia, é feijão pra botar no
fogão...”. E não demora muito e surge outro canto de batição: “Pode bater que
não dói não, assim diz a casca do feijão. Pode bater que não sofro não, assim
diz a casca do feijão. Mas bata devagar, que não quero avoar quando deixo o
grão e solto o feijão...”.
Nos
sertões antigos, de repente as ruas de chão amanheciam tomadas de feijões pelas
calçadas e mais adiante. Tudo ainda como retirado da terra, com folhagens e
cascas, ali espalhadas para a secagem debaixo do sol. Bonito demais de se
avistar aqueles frutos da terra e logo ao lado, sempre espantando animais, o
sertanejo de olhos brilhosos pela colheita. Certamente não a esperada, mas
aquela que garantia o alimento por muito tempo.
Nos dias
de hoje, somente nas propriedades mais afastadas há continuidade no ofício da
batida do feijão. Não há mais feijão em folhagem e casca espalhado pelas ruas
de cimento e asfalto. Também quase não há mais plantação pelos sertões. Somente
a roça do mercadinho ao lado.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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