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segunda-feira, 21 de novembro de 2016

O JUMENTO AINDA É NOSSO IRMÃO?


*Rangel Alves da Costa


Segundo Luiz Gonzaga, Padre Vieira falou que o jumento é nosso irmão. Logicamente que numa alusão ao esforço do animal para ajudar o homem, ao seu companheirismo nos mais difíceis trabalhos do dia a dia, à sua amistosa disponibilidade para carregar no lombo o que o sujeito não suportaria levar adiante. Com efeito, há no jumento um poder essencial de contribuição ao ser humano. Tudo isso, porém, muito mais em tempos passados. E atualmente será que o jumento continua sendo reconhecido como tal, como amigo e irmão do homem?
Algumas explicações antes de seguir adiante. Muita gente confunde o padre Vieira citado por Luiz Gonzaga na música “O jumento é nosso irmão”, com o Antônio Vieira, padre jesuíta do século XVII. Na verdade, o religioso da Companhia de Jesus se preocupou mais com a escrita de sermões do que com a vida desse animal possivelmente introduzido no Brasil por Martin Afonso de Souza, pelos idos de 1534. Já o outro Vieira, de nome Antônio Batista Vieira, foi um sacerdote, político e escritor cearense, que viveu até 2003. É de sua autoria o livro “O Jumento, nosso irmão”, de 1964.
Nesta obra, o Padre Vieira faz uma apaixonada defesa do jumento e, por extensão, do meio ambiente e da proteção animal. Numa época em que a conscientização ecológica e a luta em defesa dos animais ainda eram questões de poucos abnegados, eis que surge o sacerdote para denunciar os abusos contra os indefesos asininos, objetos que eram de abates em frigoríficos clandestinos e maus-tratos por parte de criadores e de parte da população. Observa-se, assim, que antes mesmo do limiar dos anos 60 já havia truculência contra os animais, e sem a existência de políticas ou movimentos em defesa dos seus direitos. Apenas vozes como a do Padre Vieira.
Mas a voz de Vieira passou a ecoar mais fortemente e a ser devidamente reconhecida quando em 1968 Luiz Gonzaga e José Clementino compuseram “Apologia ao jumento”, mais conhecida como “O jumento é nosso irmão”, inspirada exatamente naquela obra. Por isso mesmo que a letra começa reverenciando o padre defensor dos animais: “É verdade, meu senhor, essa história do sertão, Padre Vieira falou que o jumento é nosso irmão...”.
E Gonzaga prossegue justificando a importância do jumento na vida do nordestino: “O jumento é nosso irmão, quer queira, quer não. O jumento sempre foi o maior desenvolvimentista do sertão. Ajudou o homem na vida diária, ajudou o Brasil a se desenvolver. Arrastou lenha, madeira, pedra, cal, cimento, tijolo, telha. Fez açude, estrada de rodagem, carregou água pra casa do homem. Fez a feira e serviu de montaria. O jumento é nosso irmão...”.
Em certo momento, mesmo reconhecendo a petulância e intransigência do animal em certas ocasiões, quando cisma de não atender nem a chicotadas, Gonzaga afirma mais adiante: “Mas eu gosto dele porque ele é servidorzinho que é danado. Animal sagrado, jumento meu irmão eu reconheço teu valor. Tu és um patriota, tu és um grande brasileiro. Eu tô aqui jumento, pra reconhecer o teu valor meu irmão. Agora meu patriota, em nome do meu sertão, acompanha seu vigário nesta eterna gratidão. Aceita nossa homenagem, o jumento é nosso irmão...”.
E já naquela época falava na ingratidão do homem para com o animal, retribuindo-lhe o serviço duro com maus-tratos. “E o homem, em retribuição o que, que lhe dar? Castigo, pancada, pau nas pernas, pau no lombo, pau no pescoço, pau na cara, nas orelhas...”, é o que diz a letra, refletindo o momento mas também pressagiando o que se tornaria em verdadeira prática desumana e cruel. E assim porque não só o jumento continuou sendo vitimado pelas nefastas ações humanas, mas todas as espécies de animais, domesticados ou das florestas. Contudo, o que vem acontecendo com o jumento é um tipo de violência diferenciada, vez que caracterizada pela ingratidão e abandono.
A verdade é que a chegada dos modismos ao mundo nordestino, principalmente nas lonjuras sertanejas, uma profunda transformação passou a ocorrer nos modos de vida e nos costumes da população. As estradas se alargaram, porém não mais para a passagem segura dos carros-de-boi ou dos animais de montaria, e sim para os veículos e motocicletas. As motos se tornaram verdadeira febre nos rincões matutos e fizeram com que o homem desprezasse de vez outros meios de montaria e transporte.
Ao trocar o lombo do jumento pela motocicleta, aos poucos o homem foi relegando seu antigo irmão e companheiro ao abandono. E o que se tem hoje em dia é uma verdadeira leva de animais ao descaso pelos pastos ressequidos, esquecidos no alimento e no gole d’água, sem quaisquer tipos de cuidados. Quando não abandonados pelos cercados, simplesmente deixados pelas beiras de pistas, provocando problemas nas rodovias e tendentes a matar ou morrer em acidentes.
Padre Vieira certamente ficaria entristecido com a situação de agora do irmão jumento. Em completo abandono, cada vez mais esquecido, nem tem mais força para relinchar quando a moto passa jogando poeira em seus olhos. E o homem sequer dá importância quando os urubus se lançam sobre suas ossadas.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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