*Rangel Alves da
Costa
De modo
estranho, mas a verdade é que o livro de registro de mortos está cada vez mais
tomado de nomes de vivos. E não são fantasmas ou assombrações, mas pessoas
deste mundo, em carne e osso e sentimentos, que vão sendo consideradas como
desaparecidas ou inexistentes entre os demais. Neste sentido já havia afirmado
o filósofo: Há gente que apenas vive sem viver, há gente que apenas está sem
ser visto ou considerado, como se a morte em vida lhe antecipasse o fim.
Já um
velho amigo sertanejo, daqueles sábios moldados na quentura da terra,
assuntava: Há um cemitério pelo mundo inteiro, cheio de defunto morto e de
defunto vivo. Tem gente que andeja como se vivo fosse, mas já se foi desde
muito. Tem gente viva que nem parece que ainda vive. Também não há muita
diferença em tá debaixo da terra ou por riba dela quando o sofrimento é tanto
que chega a não suportar. E quem disse que viver é padecer desde o amanhecer ao
anoitecer?
Diz-se,
assim, que há um obituário de vivos toda vez que o vivente seja considerado
como um renegado das mínimas condições de existência. Neste sentido, somente
pode ser considerada como vida aquela que torne a pessoa reconhecida na sua
dignidade, como ser de direitos, como alguém que possa fruir dignamente de sua
própria condição humana. Por consequência, aquele que rasteja em busca do grão,
que se ressente da negativa do pão, da água, do remédio, da moradia, de
qualquer felicidade ou prazer, tem seu nome inscrito no obituário dos vivos.
Logicamente
que obituário se refere a óbito, a falecimento. É o registro ou informe sobre a
morte de alguém, contendo os dados necessários à sua identificação, contendo
ainda, possivelmente, dados relativos à filiação, laços familiares e os feitos
em vida. Alguns jornais ainda publicam obituários, outros não. A morte parece
ter se tornado insignificante demais para ser lembrada além família, parentes e
amigos. E, devido ao crescimento populacional, há também o fato de ter se
tornado tão comum e rotineira que já não é mais pranteada como antigamente.
Houve um
tempo que a morte era quase que protocolar, exigindo cerimônias e rituais de
despedida. Os velórios, as sentinelas e os encaminhamentos fúnebres eram
exigências que as famílias observavam em detalhes, ainda que as dores e os
sofrimentos se redobrassem. As missas, os lutos, as saudades, também possuíam
maior significação. Atualmente, contudo, poucos são os velórios nas residências
e diminutas também as manifestações de pesar. E chegam mesmo a dizer que são
tantos os sofrimentos em vida que apenas se somam aqueles pela morte de alguém.
Mas é
chegado um tempo que os obituários só têm serventia aos historiadores. De vez
em quando estes estão repassando papéis envelhecidos em busca de dados que a
outros não teriam qualquer importância. E dizem que o historiador sergipano
Sebrão Sobrinho possuía avidez em vasculhar tais documentos em capelas de
cemitérios. Só tinha como verdadeira a informação se pudesse constatar no velho
livro a data de nascimento e da despedida. Era um apaixonado por datas, dados
estatísticos, minúcias históricas.
Mas por
que existiria obituário de vivos, se este documento se presta unicamente a
registrar a morte? Eis uma história para depois saber se o historiado está morto
ou vivo. Era uma vez um sujeito que passou a andejar pelas ruas depois que
perdeu barraco, mulher, quase tudo o que tinha vida. Molambento, sujo, barba e
cabelos longos, também sujos e desgrenhados, na barriga uma fundura de poço. De
fome e sede. Reconhecia velhos amigos, mas por nenhum era reconhecido. Tentava
se aproximar e era ignorado. Sem cama, sem mesa, sem porta, apenas o mundo como
guarida. Sempre entristecido, assim foi vivendo entre soluços sem prantos e dor
sem gemidos. Solitário num banco de praça, sempre esperava o outono chegar para
se avistar naquele aflitivo e angustiante retrato. E um dia sentiu que já era
folha seca, que também precisava ser levado pela ventania. Mas ele vivia?
Nas portas
e corredores de hospitais o livro aberto. Nas condições que chegam e como são
cuidados, verdadeiramente ninguém sabe em qual página escrever seus destinos.
Sabe-se que há um país - qual nome? - onde basta precisar de atendimento médico
em hospital e já se está tendo o seu nome lançado no obituário dos vivos. E
também aqueles esquecidos de toda sorte que mugem e berram as dores do bicho
nas secas de cada dia, que comem o barro e bebem o suor da cruel desvalia. Em
toda seca que há e o livro é aberto para o rabisco da sina. E assim o obituário
vai enchendo suas páginas de vivos que já não vivem.
Aquela
criança africana, rastejando o grão e comendo terra, de sepultura nos olhos e
ossada na pele, parece ser de identificação indefinida no livro. Por mais que
ainda sopre vida, por mais que seu olho se mova sem brilho, não há como dizer
que está viva. O problema é que não há mais páginas para tantos nomes.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário