*Rangel Alves da Costa
Desde
muito que os cemitérios deixaram de ser apenas locais para enterro dos mortos.
Também desde muito que os campos-santos deixaram de ser visitados somente pelos
entes saudosos dos falecidos. Uma gente nem dolorida nem saudosa que se arvora
do direito de espantar a sua paz.
O medo de
cemitério já não se faz mais presente como noutros idos. Antigamente, pessoas
sequer suportam a ideia de pensar naquele lugar dos mortos. Temiam que as almas
levantassem dos túmulos e tomassem o mundo dos vivos ou mesmo que aparições
inesperadas fizessem reencontrar o indesejável.
O
cemitério comumente é visto num misto de temor, dor e saudade. Evita-se passar
perante os seus portões para não se aproximar de dolorosos passados. Avista-se
o muro como se este fosse a fronteira entre o viver e o eterno adeus.
Imagina-se sempre ser lugar apenas de quem já não vive, e jamais dos vivos.
Mas nem
todo mundo procura se afastar a todo custo dos cemitérios. Não só para visitar,
cuidar dos túmulos, fazer orações, acender velas e colocar flores novas, mas
também como lugares comuns, a verdade é que muitos caminham pelos campos-santos
como se estivessem numa rua de portas fechadas e pessoas ausentes.
Por que
muitos campos-santos são ajardinados, com caminhos silenciosos e até
convidativos para a reflexão sobre a vida e a meditação sobre as fragilidades
humanas, não raro que também sirvam como verdadeiros recantos de passeios ou
estadias ao longo dos dias. Há mesmo muita gente que se compraz entre túmulos.
Alguns
casais também preferem as pedras frias dos jazigos para os delírios e êxtases
sexuais, com gemidos e sussurros dolentes que mais parecem de sofrimento pelas
ausências. Muitos encontros amorosos são marcados entre jazigos e catacumbas,
muitos corpos se dão à meia-luz das velas queimando e ao entristecimento das
flores murchas.
Muitas
vezes, o andante por fora dos muros de repente ouve gemidos vindos lá de
dentro. Apressa o passo ou corre com a certeza de que ouviu lamentação dos
mortos. E assim vai dizer ao próximo que encontrar. Contudo, nada mais que um
casalzinho em êxtase por cima de um túmulo semiaberto.
Contam que
um casal, de tão envolvido que estava em carícias e arrebatamentos, de tão
afogueado e chamejante que já estava, eis que de repente se viu caído dentro da
cova. Na hora do bem-bom o cimento estragado cedeu e os dois, um por cima do
outro, foram parar em cima de ossos e cinzas. E sem parar o deleitoso ofício.
Atualmente,
e com razão, muitas pessoas temem passar nas proximidades dos cemitérios por
outros motivos, e por motivo que não o medo dos mortos. É que marginais,
drogados e todo tipo de gente perigosa, costumam fazer ponto defronte ou pelos
seus arredores. E ali ficam à espera daqueles que sempre chegam já cabisbaixos
e entristecidos.
Contudo,
cada vez mais os visitantes dos cemitérios se afeiçoam a pessoas que chegam ali
para morrer. Sim, procuram os cemitérios para morrer. Quer dizer, antes mesmo
de serem conduzidos após a morte, a esta procuram dentro do próprio
campo-santo. E de diversas formas.
De repente
e o portão é invadindo por alguém que chega correndo e se entranha entre
túmulos e jazigos. Outro vem atrás no encalço, sedento de sangue, com arma à
mão. Aquele primeiro vai se escondendo como pode, e este vai farejando em cada
canto. Então a caçada termina como mais um morto entre os já existentes.
Jovens
pulam muros, saltam portões e lá permanecem usando drogas. Por isso mesmo que
não é difícil que o cheiro da maconha fumaçando acabe sufocando o cheiro da
cera de vela queimando. Não só maconha, mas também para o uso de outras drogas
pesadas, nefastas, mortais.
Muitos
cemitérios se tornaram pontos de uso e de tráfico, de coleta e passagem de todo
tipo de entorpecente, sob o testemunho de muitos que, no silêncio eterno da
morte, sequer podem avisar a polícia. Há mesmo aqueles que utilizam os túmulos
como locais de depósito e guarda de seus bagulhos, fardos, carregamentos.
Por causa
da droga, também se mata dentro do cemitério. De vez em quando os jornais
noticiam. Viciados, talvez devedores de traficantes, se refugiam ao lado dos falecidos,
mas ainda assim são encontrados e mortos. Quer dizer, morrer dentro do
cemitério e depois para ele retornar. Assim os caminhos dessa humanidade que
vai antecipando cada vez mais o seu fim.
Daí que
nos cemitérios muito mais acontece do que imagina nossa vã filosofia. Não pelos
mortos, que ali repousam seu sono eterno, mas pelos vivos, que atormentam dia e
noite a paz sepulcral.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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