*Rangel Alves da Costa
A rede de dormir se constitui numa invenção
nativa destes os tempos mais antigos. Sem cama, sem colchão, sem qualquer tipo
de estrado que desse um mínimo de conforto ao corpo na hora do repouso, os cordames
de cipó foram sendo juntados para formar um leito esticado: a rede.
Rede de muitas feições e funções. Sua
serventia vai desde local único de dormida à simples espreguiçadeira para
deleite do corpo. O índio gosta de nela deitar enquanto o fogo aceso espanta
mosquitos bem ao lado. Macunaíma (aquele mesmo herói sem nenhum caráter de
Mário de Andrade), preguiçoso que só, não pensava noutra coisa senão em cima
dela se espreguiçar.
Redes de viagem, esticada entre árvores, como
o meio mais seguro e deleitoso para repousar o cansaço. Rede de varanda, de
mero fazer nada a qualquer hora do dia. Rede de madornar depois de um regabofe
ou à luz poética do entardecer. Lentamente balançando, preguiçosa, gostosa
demais.
E também a minha rede, eis que sou usuário e amigo
inseparável de seu vagaroso balanço. E ela vai e vem, como remanso de leito de
rio, até aportar estática comigo dentro. Então fecho os olhos para adormecer e
sonhar as ilusões tão merecidas ao corpo lanhado de luta e realidade. E é como
se repousando nas asas de um passarinho em voo leve.
Rede que é minha amiga, minha namorada, minha
companheira, minha doce mulher. Aconchega-me no seu seio, espalha-me sobre o
seu corpo e depois me faz carinho e ninar. Deito-me com a cabeça no seu ventre
e ouço o murmurar de um rio que vai escorrendo manso aos horizontes noturnos.
Rede que me encanta e me embala desde a
infância interiorana, seguindo comigo pela capital e outros caminhos da vida. Aonde
chego há de ter uma rede. Do contrário não descanso nem adormeço de jeito
nenhum. A cama, mesmo em cima de mil e macios colchões, deixa-me o corpo todo
alquebrado.
Já se fazem antigos os tempos que todas as
noites cumpro o sagrado ofício de armar minha rede de dormir. Como dito, na
cama nunca, sempre na rede. E se for numa varanda refrescada pela aragem da
noite então não há maior prazer. Desde os treze anos. Significa dizer que já se
vão quarenta anos.
Minha devoção pela rede é tamanha que nela
dormia mesmo nos tempos que vivia com companheira. E desde que o convívio acabou
que novamente passei a viver exclusivamente para o pano grosso estendido de
cadilho a cadilho.
Na rede sinto prazerosa solidão, aconchego
meus pensamentos e sonhos sem ninguém incomodar. E alguém já disse – e com
razão – que a rede deixa a solidão induvidosa. Acaso a pessoa não se deite nela
juntinho de alguém, certamente que haverá o pleno convencimento que se está só.
Neste aspecto, a rede diferencia muito da
cama. Nesta, por exemplo, quando a pessoa procura outra pessoa no outro lado e
nada encontra, nem a mão nem o corpo, sequer sente a respiração ofegante, então
se dana a sofrer pela ausência. Na cama, o convívio de dois, e quando há a
falta de um então tudo entristece e faz sofrer.
Mas na rede não. Não há como ir procurando a
presença ao lado, pois ou está juntinho, quase um por cima do outro, ou não há
que duvidar da solidão. A solidão na rede acaba sendo a mais verdadeira que
possa existir. E também aquela que mais deixa o corpo entregue a si mesmo, sem
nenhum outro calor ou presença.
Daí a solidão mais profunda na rede de
dormir. Não há ninguém para abraçar, para olhar ao lado, para chamar para o
beijo, para trocar carinho e carícia. O olho olha somente a parede, o teto, o
vazio. E por isso mesmo se fecha para se sentir como viajando sobre águas mansas.
Remansa, navega, lentamente vai em solitário
percurso. E na solidão adormecer para solitário acordar. Sem ilusões.
Escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
blograngel-sertao.blogspot.com
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