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quarta-feira, 5 de setembro de 2012

CABEÇA DE DOIDO (Crônica)


                                                 Rangel Alves da Costa*


Certa vez ouvi uma história impressionante sobre um doido que vivia ao redor dos muros da fortaleza de um poderoso reino. E nunca mais pude esquecer-me do relato, muitas vezes pensando que até poderia enlouquecer de tanto pensar naquilo.
Eis que o grandioso soberano, homem de grandes virtudes guerreiras, de repente se viu ameaçado por uma junção de reinos menores que marchavam para destruir sua fortaleza, arrasar suas terras, dizimar toda a população.
Imediatamente o rei reuniu os conselhos dos nobres, dos guerreiros, dos magos e da população, procurando desesperadamente que apontassem meios para evitar aquela tragédia. Prometeu que se encontrassem uma solução imediata e eficaz, transformaria o reino de um num reino de alguns, bem como diminuiria dois grãos em cada medida da colheita paga como tributo real.
Os nobres optaram por fugirem com todas as riquezas; os guerreiros acenaram para o enfrentamento como o único recurso disponível; os magos imploraram para que os guerreiros atrasassem por um mês a invasão, pois seria o tempo para que uma poderosa e destruidora magia ficasse pronta; já os representantes da população não conseguiram dizer nada porque apenas choravam desesperadamente.
Atormentado diante da situação, extremamente furioso por não terem chegado a qualquer solução, o rei arremessou um candelabro de ouro num vitral enquanto vociferava que qualquer um doido teria cabeça melhor do que aquelas tão imprestáveis. Mas nesse momento as vozes dos nobres, dos guerreiros, dos magos e dos representantes do povo ecoaram numa só voz: Doido, o grande rei falou em doido?
Imediatamente o rei mandou que procurassem e trouxessem à sua presença o doido mais doido, mais varrido, mais enlouquecido mesmo, daqueles de pedra e de nenhum pingo de juízo na cabeça. O encarregado logo informou que pela descrição feita, somente um maluco que vivia pelos arredores poderia se amoldar perfeitamente. E logo depois da muralha encontraram o homem tentando jogar pedras por cima e dizendo que queria acertar o cocuruto do rei.
Ao perceber que se aproximavam para segurá-lo, o desengonçado maltrapilho recuou, subiu rapidamente numa pedra grande e começou a dizer: “Aproximem-se e ajoelhem-se diante de mim, seu senhor e rei. Bem sabia que não tardaria para que meus súditos com feições tão sorridentes e graciosas viriam se ajoelhar aos meus pés. Crianças, joguem fora essas lanças e venham, aproximem-se, beijem os meus pés e depois acariciem minhas mãos. E só assim jurarei que não exterminarei de vez todos os exércitos com uma só palavra!”.
O rei, que do alto da torre escutava as maluquices do doido lá embaixo, ao ouvi-lo falar numa palavra que aniquilaria exércitos, não se conteve, e saltitante desceu as escadarias e apressadamente foi até o lado de fora beijar os pés do maluco. A multidão aglomerada ao redor não acreditava no que via, mas os nobres, os guerreiros, os magos e os representantes da população chegavam a lacrimejar de esperanças.
Ajoelhado diante da pedra onde o doido continuava imponente, o soberano implorava: “Meu grande homem, senhor maior de todo esse reino, é verdade que ouvi de sua boca gloriosa que bastava uma palavra para aniquilar exércitos inteiros de inimigos?” E o doido respondeu: “Sim, o seu e todos os outros exércitos”.
O rei então não se conteve, e chorando perguntou que palavra tão poderosa era aquela que cairia sobre os inimigos como uma lança de fogo. E o doido soltou uma gargalhada que fez todos ao redor estremecerem. Em seguida, com feição espalhafatosa, num misto de zombaria e careta, tirou pedras de um dos bolsos e começou a jogar na cabeça do rei, que apenas procurava se proteger com as mãos. Até o bobo da corte se aproximar para dizer que tivesse calma porque cabeça de doido era assim mesmo.
Mas de repente o doido parou e levantou a voz:
“Enfim o dia da pergunta e da resposta. Quem é o doido, quais são os sadios? Uns doidos para se livrar da morte, beijando os pés de quem não tem nada de sadio. Onde está a maluquice, me respondam. Onde está a insanidade, me respondam. Ou será que a sanidade depende apenas da ocasião? A doidice está em atirar pedras ou atirar com armas? A doidice está em quem se alimenta de restos ou em quem tira o alimento da boca dos famintos? Não precisam responder. Os doidos não são ouvidos, não são valorizados, não são absolutamente nada. E agora vocês, tendo à frente o vosso rei, chegam aqui no meu pedestal grandioso implorando por uma palavra, apenas uma palavra. E aquela palavra que tem o poder de calar o inimigo, de acabar com os exércitos, de expulsar de vez as ameaças. Mas direi, direi agora qual é a palavra...”.
E foi um espanto geral, com gente desmaiando, pessoas pulando de alegria, o rei sendo servido de água com açúcar. E quando sentiu que já conseguia pronunciar qualquer coisa, o soberano apenas implorou: “Por sua monumental sanidade, dizei-me qual a palavra!”. E ouviu bem alto:
“Loucura, a palavra que tanto precisam ouvir é loucura. Não há um só exército que tenha encorajamento diante da loucura. Todas essas pessoas viviam afastadas de mim, fugindo da minha presença com medo da minha loucura. Assim será também com os exércitos, os inimigos, tudo que ameace. Basta fazer com que chegue aos seus ouvidos que o rei está completamente louco que duvido que algum inimigo se aproxime!”.
E assim foi feito. O reino foi salvo. E o rei de vez em quando é visto lá em cima da torre jogando pedras nos seus súditos abaixo. E o doido? Mas qual deles?

  

Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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