Rangel Alves da Costa*
O que é uma simples janela na frente de uma casa numa ruazinha qualquer interiorana, senão uma abertura na parede para deixar passar a luz e o ar, com caixilho de madeira que permita sua movimentação, sua função primordial de abrir e fechar?
É. Ontem ou hoje, praticamente todas as janelas ainda continuam assim: uma abertura na parede, a certa altura do piso, que permite a iluminação e/ou o arejamento do ambiente e dá vista para o exterior. A mesma janela tão amiga das fofoqueiras, das mocinhas apaixonadas, das traições adulterinas, das fugas inesperadas.
Mas naquela janela não. Especialmente nesta aqui tratada, era totalmente diferente, vez que parecendo ter vida própria, ser possuidora de sentimentos, misteriosamente tomada de angústias e aflições. E tudo de dentro da casa e de fora, até mesmo quando estava fechada. E fechada era quando mais se expressava como janela, principalmente através de suas frestas.
A casa era pacata, humilde, com frente de tijolo rebocado, pintada de uma cor indecifrável com o passar do tempo, possuindo porta e janela. Duas caixas de madeira muito antiga, ainda não destruídas ou completamente retorcidas por causa da madeira de lei da região, mas já completamente envernizadas pela ação do tempo. E que verniz impregnado de uma cor férrea, terrosa.
Lugar residencial de única moradora. Desde muito que não citavam mais o nome da mulher, mas apenas a moça velha, a solteirona, a invicta, a titia, a encalhada, a desprezada, a noiva da morte. Coitada da pobre mulher. Era solteira sim, uma eterna apaixonada, louca para arrumar companhia, ter uma relação amorosa, namorar como moça virgem qualquer. Mas que nada, pois quanto mais recorria a Santo Antonio mais a solidão lhe afligia.
Da lindeza juvenil ainda mantinha muitos traços. Não era velha, apenas de meia idade, filha única e morando sozinha desde que seus pais faleceram. Vaidosa, não gastava das pequenas posses quase nada noutra coisa senão no luxo pessoal, no embelezamento, nas roupas, perfumes e bijuterias. Talvez por isso mesmo que a casa parecia tão abandonada e triste.
Os motivos para tanto vaidade e tanto zelo pessoal são mais que óbvios. Tudo para ver se algum moçoilo a olhava com olhos desejosos, se algum solteiro fazia um aceno e lançava um beijo soprado na palma da mão, se qualquer um passasse diante de sua janela e pronunciasse uma palavra mais ardente ou pinicasse levemente o olho direito. Ai quem dera arranjar um homem! Sonho, que sonho atormentando a esquecida da carne.
Arrumava-se toda, colocava água de flores e leite de colônia, e depois de passar dez minutos contados em frente ao espelho, seguia em direção à janela. Como esta era de duas bandas, primeiro abria levemente um lado e ainda um pouco distante lançava o olhar ao mundo lá fora, procurando enxergar homem, avistar rapaz. Depois abria as duas bandas e se posicionava feito uma pintura expressionista de mulher emoldurada pelos caixilhos.
Ano entrava e ano ia embora e aquela mesma rotina da mulher na busca enlouquecida para fugir de sua dolorosa solidão. Todos os dias, assim que o sol arrefecia no seu calor, ela era avistada de olhos dançantes de canto a outro, espalhando seus tantos perfumes pelos arredores e mais além. Só saía dali quando o por do sol se completava, mas se moço bonito passasse continuava até mais tarde esperando o seu retorno. Depois não restava fazer outra coisa senão fechar a janela e retornar à solidão.
Contudo, e fato que ninguém via, mas não somente naquele horário a solteirona fazia vigilância na sua janela. Pela manhã ou mesmo à noite, ficava por trás da madeira de olhos voltados para as brechas e olhando a movimentação da rua. E eram nesses momentos que a outra mulher se revelava. Sem pintura, sem maquiagem, sem perfume derramado, sem roupa enfeitada e bijuterias, sem cabelo arrumado, era apenas a mulher triste, desiludida, verdadeiramente solitária, numa angústia de fazer lágrima chorar.
Enxergando o movimento, a intensidade da vida e os seus transeuntes, as faces com seus motivos de vida, as sombras da noite e o romantismo da luz do luar caindo sobre as paisagens, não demorava muito e os olhos se enchiam de torturas, as lágrimas desciam pelo rosto real, a dor tomava o peito. O pranto silencioso transbordava na mulher.
Um dia a janela não foi aberta, ela não apareceu no umbral, o seu perfume não viajou pelo ar. No outro dia também. Nunca mais a janela se abriu. Mas se alguém se aproximasse e curiosamente olhasse pela brecha na madeira, certamente que encontraria lágrimas à sua frente, do outro lado, se derramando na solidão escondida.
Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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