Rangel Alves da Costa*
Motivos não faltam ao sertanejo para o viver carregado de tristezas e sofrimentos, mas por outro lado é um afortunado diante das paisagens que tem diante do olhar, perante os cenários encantadores que povoam o seu mundo e principalmente em meio à aquarela que, sem ser pintor, orgulha-se de não ter outra igual.
Em tudo que há no sertão há também uma cor diferenciada, ainda que da mesma tinta da natureza. E diferenciada porque capaz de transformar-se em breves instantes, dum dia pra uma noite. A paisagem verdejante de ontem amanhã já estará acinzentada, cor das plantas e folhagens mortas.
Inúmeros exemplos desse capricho do artista podem ser verificados naquelas distâncias áridas, esturricadas, muitas vezes amedrontadoras, tantas vezes paradisíacas. Como o camaleão que transmuda de cor, a terra lamacenta de um dia muda de matiz quando o sol se derrama; se o mandacaru e o xiquexique tomam uma tonalidade marrom então é um deus-nos-acuda.
Cuscuz de milho da terra é mais amarelinho, solto e cheiroso. Não há quem não sinta seu cheiro muito além das vizinhanças. O café batido no pilão e torrado no fogo de lenha é preto retinto, encorpado, feito melaço negro, de aroma inconfundível. Quando ferve no bule antigo e solta aquele perfume pelo, não é difícil que passarinho venha cantar à janela. Gente não, pois vem correndo de xícara à mão.
Os dias sertanejos e as noites matutas possuem também elementos inconfundíveis, cores caracteristicamente caipiras. Uma vida um tanto marrom, tanto na casa de barro, como no piso lá dentro, nas panelas, tachos, potes e moringas. Nas cuias enfeitando os cantos, nas cabaças de água e mantimentos, nas bocas sujas dos meninos famintos pela terra doentia das paredes.
Mas também alumínio e estanho, cores metálicas da sede e da fome, dos pratos amassados e das colheres tortas, dos canecos deitados ao pé do filtro de barro ou da moringa de corpo molhado. E também da faca peixeira, da arma, da enxada e do enxadeco, da pá e do gadanho, do tronco de árvore petrificado por tanta seca.
E ainda a cor da madeira, nova ou velha, conservada ou maltratada, nas mesinhas e tamboretes, nas portas e janelas, na cristaleira antiga, no oratório de meu Deus, na moldura de retratos tão antigos que só são reconhecidos pelos olhos chorosos que miram os tempos distantes e as recordações. A cor envernizada do velho baú de cartas e nenhum segredo, do guarda-roupa quase sem serventia.
Marrom terroso também no couro, na roupa da vaqueirama, no aió e no alforje, no gibão e na cartucheira, na alpercata e no roló, no cinturão amedrontador, no chicote de couro cru, no cantil surrado e passado de geração a geração. Cor encourada da vida sertaneja, do lombo do bicho, do couro do animal magricela, do cavalo corredor, do garrotinho desvalido. Da vida, da vida...
O marrom jambeiro, trigueiro, na cara do povo, na pele do sertanejo, na sua feição mais singela. E que coisa incrível e tão bonita: todo mundo que nasce no sertão um dia acaba tendo a cor da terra, do couro curtido, da madeira trabalhada pelo suor dos dias, de tudo envernizado pelo sol de sempre. Daí ser uma raça de cor única, pois não ditada pela herança genética, pelo sangue familiar, e sim pelo pincel do tempo e pelo espelho do sol.
Contudo, o simbolismo maior das cores sertanejas está representado por seus dois extremos: o dia e a noite. O dia, desde o alvorecer ao por do sol, com seu matiz ensolarado, a sua cor ardentemente brilhosa de doer nos olhos, a miragem que vai transformando a paisagem em objetos irreconhecíveis. Como nas ilusões desérticas, quem olha distante pode pensar que gente é mandacaru, pedra na estrada é poço d’água, cobra perigosa é graveto de pau. E quando mais o sol vai descendo valente mais parece que a natureza vai dançando um bailado tortuoso de agonia e aflição.
Mas após o entardecer, quando o por do sol avermelhado vai transformando as nuvens em labaredas de fogo, tudo começa a ter novamente a feição do povo, um semblante marrom, até chegar ao sombreado mais escurecido. E enquanto as paisagens apenas sussurram, os bichos se escondem e os mistérios da mata saem de suas grutas e tocas, eis que lá em cima vai surgindo o anel enluarado, cheio de amarelo-cobre, derramando os raios dourados sobre o fascinante sertão.
É noite no sertão, é breu nas entranhas da mataria. Mas adiante das portas das casas, nas malhadas, descampados e vizinhanças, há um povo cantando, orando, festejando feliz seu momento de luz, seu instante de lua, a certeza que o dia vai adormecer abençoado pela divina cor. Mas só até o galo cantar, ou antes disso, pois ainda na madrugada escurecida o sertanejo abre sua porta para o primeiro abraço ao seu destino na vida.
Destino de sofrimento, de padecimento, mas de contentamento e felicidade infinitos. Há uma manhã abençoada, um dia ensolarado, uma noite dourada. E tudo tão diferente, pois tudo autenticamente sertanejo. Tudo numa terra de lua e de sol, num sertão de meu Deus.
Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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