Rangel Alves da Costa*
Por toda minha vida vivi planejando um dia criar coragem, arrumar a velha mochila de partida e seguir adiante, curva a curva, uma após outra, até pegar o rumo certo do Monte Sah’y.
A primeira vez que ouvi falar desse monte sagrado foi através do sábio do entardecer. Na luz avermelhada da tarde indo embora, a cada novo por do sol ele me segredava uma palavra acerca desse misterioso e venerado lugar.
Mas certa feita, juntando palavra a palavra, e quando meus olhos se apertaram para avistar o fogo vermelho-amarelado da tela lá em cima, descortinei o lugar do monte e qual caminho que deveria percorrer para chegar até o seu cume.
Isso já faz mais de duzentos anos, e todo esse tempo passei me preparando para o grande dia da partida. Foi um processo muito longo e meticuloso porque ouvi o sábio da manhã, que me ensinava a caminhar sempre após o anoitecer; e o sábio do anoitecer, que me ensinava a caminhar sem temer os espinhos na estrada nem os labirintos ao redor.
Quando me decidi de vez que já havia chegado o momento da partida, eu já contava com mais de trezentos anos. Com toda essa idade bíblica, mas ainda assim me achando forte o suficiente para caminhar léguas a fio, levando pouca comida e pouca água, e ainda assim fazer valer a minha fé e alcançar o cume do monte sagrado.
Desde os tempos mais antigos, ainda nas vizinhanças da criação, os velhos pastores, errantes, andarilhos e pagadores de promessas, já falavam coisas extraordinárias sobre o Monte Sah’y. Uns diziam estar ali o verdadeiro altar do céu, outros afirmam ali voz silenciosa da sabedoria, e ainda outros afirmavam acerca da imensa igreja ali construída, mas que somente alguns podiam sentir estando dentro dela.
Quando comecei a planejar tão árdua e difícil viagem, todos aqueles que viviam ao meu redor gracejaram do que eu dizia e até começaram a espalhar suspeitas sobre a minha sanidade. Tive que sair de aldeia a aldeia, como verdadeiro fugitivo, por mais de uma centena de vezes. Somente os três sábios consideraram o meu desejo e me deram ouvidos, mas ainda assim um tanto incrédulos inicialmente.
Quando me perguntaram o que eu pretendia fazer no Monte Sah’y, sem saber realmente o que responder, disse apenas que queria conhecer um lugar tão misteriosamente diferente. E todos, sem jamais pronunciarem uma resposta completa, diziam poucas palavras e muitas vezes desconexas. Somente muitos anos depois consegui decifrar, juntando os dizeres de cada um, o que verdadeiramente diziam acerca do monte sagrado. Eis o que acabei decifrando:
“Sim. Ali o Monte. O Monte Sah’y. Uma montanha. Um templo. Um oráculo. Tudo e nada. A fé e a descrença. A palavra e o silêncio. A presença ou a solidão. Enxergar ou cegar. Ficar ou partir. Um deus ou a pedra. Deuses ou os galhos mortos. Deus ou nada. Um coração ou um vazio. A morte ou o renascimento. Apenas a vida ou sempre a eternidade. A escolha do homem”.
Juro que lutei por mais de vinte anos tentando entender além dessas palavras. Sim, as palavras diziam muito, mas também significavam quase nada. Mas numa noite, enquanto armava minha rede debaixo da lua, eis que de súbito a frase completa me veio à mente, ou ao menos aquilo que eu achava querer dizer o emaranhado de palavras. E enfim interpretei o seguinte:
“Existe sim o Monte Sah’y. E nele pode haver tudo aquilo que seu coração de fé pretender encontrar, a voz do que você quer ouvir, a presença do que você sentir. E também a presença de deuses ou de um Deus único, que se não acolhidos na sua alma serão como pedras ou matos, coisas insignificantes. Mas ao acreditar terá a divindade no coração para a eternidade”.
Após compreender ao meu modo as palavras dos sábios, me enchi de uma felicidade tão grande que passei dois meses cantando a cantiga do orvalho. A folha molhada só secou quando atravessei a porteira do meu casebre, já na curva me despedi da minha aldeia, e segui destemidamente em frente, tendo sempre à mente as lições recebidas.
Depois do longo canto chorei por dez meses seguidos. Confesso que rios de lágrimas porque sabia jamais retornar até ali. A minha viagem não era a passeio, para fazer visita, ficar por lá apenas alguns meses ou anos e depois retornar. Não. Meu objetivo maior era permanecer por lá, viver em cima do monte até a noite dos meus dias não mais acordar.
O meu retiro no Monte Sah’y seria eterno enquanto vida eu tivesse. E assim que avistei a montanha não mais duvidei que seria assim mesmo. Ao longe, bem ao longe, já no fim do dia, precisamente ao entardecer, senti a presença da voz do silêncio. E segui adiante. Dois dias após não encontrei mais nada que pudesse subir. Estava bem no cume do monte.
O lugar era deserto, rodeado apenas por plantas espinhentas, pedras, árvores antigas e um constante som da ventania que ali soprava de forma diferente. Logo joguei o saco de viagem no chão, me ajoelhei para a prece de agradecimento pela chegada. E depois abri os olhos para encontrar uma imensa igreja adiante. E lá dentro havia um Deus que logo trouxe para dentro do meu coração.
E até hoje continuo em retiro no Monte Sah’y. E de lá de cima olho abaixo e ao redor e vejo apenas o mundo. Mas como o mundo é diferente da vida com Deus no coração!
Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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