SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 4 de setembro de 2012

UM DEDO NA PROSA E OUTRO NA VIOLA (Crônica)


                                     Rangel Alves da Costa*


No sertão é assim, sempre mais cedo e mais bonito, mais apressado e mais completo. Cedo para acordar, para pegar no batente, também pra guardar a enxada ainda com o sol se pondo. E logo o banhar o corpo, o tomar o café e o colocar tamboretes pela frente do casebre pra esperar a lua descer bonita.
Assim, é costumeiro que o sertanejo vá tomar o último gole de café na porta da frente e dali lance o olhar pelo horizonte para saber como será a noite. Já conhece a fase da lua, já sente o clima pelo vento que sopra, mas precisa saber se alguma nuvem lá por cima poderá atrapalhar o completo clarão da lua.
Precisa saber disso porque sentar ali fora com a lua encoberta ou aparecendo só um tiquinho não tem graça nenhuma. Ainda que se sinta de coração reconfortado avistando os vaga-lumes, ouvindo canto da cigarra, o murmurejar da natureza, e tudo em meio ao negrume fechado, nada comparado ao despontar da lua imensa, enorme, contagiante.
Lua confirmada, clarão descendo solene, não duvida mais sobre o que vai fazer para animar a noite até a hora de fechar a porta para o descanso. Procedimento rotineiro, costume noturno de alegrar coração, entra novamente no barraco e volta trazendo tamboretes e a velha viola de pinho. Não é tocador nem violeiro, catireiro nem cururuzeiro, mas se contenta como ninguém em apenas dedilhar a viola e fazer sair dela qualquer som chamado sertão.
Toca pouquinho, quase nada, mas de tanto dedilhar até que acabou aprendendo a dar curva e norte a um violado ou outro. Só tem um porém, pois só se contenta dedilhar no velho pinho aquilo que for tido como legítima música caipira, a música de raiz, aquelas modinhas que falam em solidão caipira, em boiadeiros errantes, em amores matutos, em poeira de estrada e vida campesina agraciada por Deus.
Sente-se até envergonhado, mas a verdade é que a vizinhança logo vai chegando para o dedo de prosa acompanhado do som da viola. A conversa é pouca, é rápida, é avexada, dizendo coisinha ou outra sobre o trabalho fatigante do dia, a estiagem que não dá sinal de acabar, a vaquinha magricela de couro e osso, o temor pela falta de água e de alimento.
E quando o proseado vai pendendo pro entristecimento, logo chega um e pede alguma coisa de Tonico e Tinoco. Então a mataria ao redor desperta para ouvir “Tristeza do Jeca”. E o dedilhado vai sendo acompanhado pela voz desafinada do compadre:
“Nestes verso tão singelo
Minha bela, meu amor
Pra vancê quero contar
O meu sofrê e a minha dor
Eu sô que nem sabiá
Quando canta é só tristeza
Desde o gaio onde ele está
Nesta viola eu canto e gemo de verdade
Cada toada representa uma saudade...”.

E vem outro e pede “Pé de Ipê”. O dedo corre a viola e o sertanejo levanta mirando a lua:
“Eu nen sei que divinhava,
Quando anssim eu te chamava
De muié sem coração
Minha voiz anssim queixosa
Vancê era a mais formosa
Das cabocra do sertão
Certa veiz tive o desejo
De prová do mé do beijo
Da boquinha de vancê
Lá no trio da baixada
Pertinho da incruziada
Dibaxo do pé de ipê
Mais o distino é traiçuero
E me dexô na solidão
Foi simbora pra cidade
Dexano triste saudade
Nesse pobe coração...”.

A garrafa de pinga vai passando de mão a mão, a saudade aperta o coração. O olho aperta, o nome do amor quer sair pela boca. Tudo é tão belo e tão triste. Tudo engrandece a alma e o espírito daquele povo sofrido e naquele momento tão farto de versos outros da vida.
E a lua vai descendo ainda mais, também quer ser cantada na sua inigualável beleza sertaneja.



Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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