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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 7 de setembro de 2012

O JAGUNÇO DE BATINA (Crônica)


                                                Rangel Alves da Costa*


Nas terras do Mundaréu e arredores, até por toda região de Labareda todo mundo conhece essa história. Muitos não gostam de falar por medo, receio que algo ruim lhe aconteça, ainda que o tal episódio tenha acontecido já desde quase cem anos.
Sobre o assunto só falavam baixinho, às escondidas, olhando de canto a outro. Mentira ou verdade, fato é que a lenda do jagunço de batina ou do padre jagunço se firmou de tal modo na consciência do povo que, de geração a geração, foi sendo repassado o baú sempre acrescido dos estranhos acontecimentos.
Não sou besta de dizer quem me contou, pois o homem me pediu por tudo na vida que não revelasse sua identidade nem em qual circunstância relatou o que sabia. Mas sobre isso, coisa que não mereça ficar no túmulo do esquecimento, digo logo que foi num botequim afastado, num canto de balcão, tendo à frente uma garrafa da mais autêntica aguardente. Pinga da boa, casca de pau. Angico. Ou umburana?
Tanto faz. Não lembro bem. Também tomei umas duas. Mas vamos lá. Contou-me o homem que ouviu dizer de quem já tinha ouvido dizer de boca passada a boca, que nos tempos mais antigos, ali mesmo naquele lugar e região vivia um poderoso coronel sertanejo, sujeito analfabeto de pai e mãe, mas com poderio desmedido sobre tudo que havia ao redor, incluindo os andantes e os rastejantes. De sua moradia senhorial ditava a vida e a morte de toda criatura existente ao redor.
À mesma época, os serviços religiosos eram comandados por um vigário muito querido pelo povo, pois homem que não se contentava apenas com a igreja e fiéis e de vez em quando se embrenhava nas matas para viver, como aclamava em sermão, o verdadeiro sentimento do povo matuto, a realidade do humilde sertanejo trabalhador. Conhecendo aquela gente de perto, seria mais fácil de pedir a Deus que intercedesse diante de cada situação.
Contudo, logo se descobriu que aquelas andanças do vigário nada tinham a ver com visita ao povo mais afastado para conhecer suas dificuldades, vivenciar a sua labuta de sol a sol e os seus sofrimentos de lua a lua. Não. Nada disso. E muito pelo contrário. O vigário se dirigia mesmo, às escondidas, cortando vereda e amolando espinho, para o casarão do coronel, onde sempre entrava pela porta dos fundos.
Era uma relação muito estranha aquela entre o coronel e o vigário. Uns diziam que o religioso ia até lá com a incumbência de tentar afastar parte dos incontáveis pecados do mandachuva. Afirmavam até que as visitas envolviam procedimentos de exorcização e de muita coisa esquisita. Outros diziam que estavam mancomunados na prática do mal e que o sacerdote não passava de verdadeiro mentor das tantas crueldades praticadas pelo poderoso algoz.
Mas um dia, meio sem querer, a verdade foi sendo descoberta. Eis que um desempregado pistoleiro do coronel, cabra pau pra toda obra, depois de tomar uma cachaça sem freio acabou falando demais e disse que ia matar não só o coronel mas também aquele que havia tomado seu lugar de jagunço, de matador, de tocaiador e derrubador de qualquer um. Então, um ouvido ouviu, mandou descer outra garrafa de pinga e o revoltado acabou dizendo quem era o novo jagunço do coronel: o vigário.
Logicamente que o espanto foi geral. E uma dose mais e outra a mais, e o ex-pistoleiro acabou revelando tudo de vez. Então disse que o sacerdote não só era bom de pontaria, experiente na emboscada, exímio na espera do inimigo, como fazia tudo vestido de batina. Usava a batina quando ia fazer emboscada porque se fosse surpreendido em atitude suspeita logo arrumava uma desculpa pra todo mundo acreditar.
Por isso mesmo tentava confundir os humildes fiéis e alardeava que andava pelo meio do mato visitando os pobres, conhecendo a fundo a realidade empobrecida daquelas distâncias. Mas não. Quando não estava na cozinha do coronel planejando a próxima morte, discutindo valores perante a fama e o poder do marcado para morrer, era porque já estava embrenhado na mataria à espreita da vítima.
Levando debaixo da batina uma carabina de cano curto, depois que apertava o gatilho certeiro, esperava um pouquinho e seguia até o local do estrebuchamento da vítima. E ali mesmo dava a extrema-unção. Tirava o chapéu, um rosário do bolso, e de aspecto contrito, como se estivesse sofrendo diante da situação, balançava o rosário por cima do caído e encomendava a alma às profundezas. Se a pessoa ainda estivesse se mexendo, dava o tiro de misericórdia e depois entrava novamente no mato.
Mas por que um homem da igreja se prestava a um serviço desses, quebrando todos os seus preceitos e se transformando num jagunço frio e desumano do coronel? Isto foi perguntado ao pistoleiro desempregado, mas ele disse que preferia não responder. Estaria cometendo um pecado grande demais, infinitamente maior do que todos que já havia cometido. Mas depois que viu duas notas dobradas por cima do balcão acabou revelando mais.
E disse que a intenção do coronel não era só, pagando caro, submeter o vigário e transformá-lo em jagunço, em perigoso matador, como acabou acontecendo. A intenção do homem era de uma astúcia sem precedentes. Transformando o religioso num bandido, mais tarde o entregaria à justiça. E foi assim que também fez. Armou emboscada em cima de emboscada, e enquanto o vigário soprava o cano disparado foi cercado pela polícia.
O coronel mandava em tudo, e mandou também a polícia praticar o flagrante. E depois pegou a batina do desafortunado pecador e se fez padre na igreja. E dizem que durante mais de dez anos, até sua morte, celebrou missa, casamento e batizado. E mandava dizer aos fiéis que se não comparecessem ao templo corriam grande perigo. E mais de dez morreram por afirmarem que não se submeteriam a uma heresia daquelas.
Depois de cada serviço religioso montava no seu alazão e seguia tranquilamente até seu casarão. E se danava a pecar, a violentar, a fazer ecoar o grito de sofrimento em todos aqueles que rezavam na cartilha de sua chibata. Só pausava as brutalidades e as arrogâncias quando recebia o amigo bispo para um carteado regado a uísque.
E dizem que foi assim. Acredito...

  

Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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