*Rangel Alves da Costa
Assim que a Rede Globo começou a exibir as chamadas da regravação da novela Gabriela, em 2012, as cenas
mostradas com Júlia Paes despertavam muito menos atenção que a música de fundo:
Porto.
E de repente eu já fechava os olhos para
navegar naquelas águas, para sentir as pedras do cais, para avistar os passos
na areia, para viver aquela vida de luta baiana no porto. Ouvir Porto era
simplesmente viajar entre cantos nagôs, entre sussurros de águas, entre apitos
de embarcações chegando e partindo.
Foi nessa época que escrevi o texto que
segue, com grande aceitação e muitos comentários elogiosos. Mas ainda hoje,
toda vez que ouço essa canção de mar novamente navego nas suas águas e me vejo
com olhos voltados a um porto de doce poesia. Eis o que escrevi:
Nunca uma música traduziu tanto a obra
amadiana como a belíssima “Porto”, de autoria de Dori Caymmi, presente na
trilha sonora da novela Gabriela, de 1975, e naquela oportunidade divinamente
interpretada pelo grupo MPB4.
Não há letra, poema, palavra dita pra ser
ouvida, versos rimando um amor, um percurso, uma dor. Apenas a música
instrumental acompanhada de um leve cantar murmurante e descompassado, assim
como as águas do mar vão chegando de mansinho e se faz barulho ao rebentar na
areia.
Suavemente, bem distante, bem lá no fundo das
águas, se ouve em tom inebriante: “iaiê, iaiê, oni, onâ, iaiê, iaiê, oni, onâ,
lele-ô, ananayô, ananayô, oni, onã, ananayô, oni, onã...”. E tudo navegando em
meio ao violão, a flauta, ao chocalho, a percussão, além das vozes
inconfundíveis dos integrantes do MPB4. Dori Caymmi também interpreta sua
canção, mas com um vozeirão que afasta a singeleza cativante da melodia.
Como tema geral da novela, pontuou as
aventuras e desventuras da inocente e bela Gabriela, do seu tão apaixonado
Nacib, da libertária Malvina, da enamorada Jerusa, do opositor e romântico
Mundinho Falcão, do mulherengo Tonico Bastos, da dona de bordel Maria Machadão,
da prostituta Zarolha, e dos Coronéis Ramiro Bastos, Melk Tavares, Coriolano,
Amâncio Leal e Jesuíno Mendonça.
Subindo ou descendo as ladeiras de Ilhéus,
mostrando as distâncias das plantações cacaueiras, passando defronte ao
Bataclan, enveredando pelas estradas e veredas dos latifúndios e casarões dos
coronéis, cobra sinuosa apenas se admirando dos pés descalços da bela mocinha.
Eis a música cantando o percurso do povo baiano colonizando suas vidas e
território, abrindo fronteiras e trazendo a riqueza e a dor.
Ao compô-la, talvez Dori Caymmi, quase da
parentela de Jorge Amado, trouxesse toda a essência da obra do amigo para a
partitura, para as cordas de seu violão, para a flauta que apita o mesmo som da
embarcação aportando no recôncavo, no cais da Bahia, em todos os cais. Daí sua
leveza, seu ondeado, seu navegar murmurante até despontar perante os olhos da
moça aflita que espera seu amor de lenço na mão.
Melodia que lembra o tão amado Jorge e
reflete a Bahia, e nos dois a luta e os amores de um povo em meio aos ciúmes,
desfeitas, disputas sangrentas, tocaias, mortes jaguncistas, corações
perdoados, boêmios inveterados, prostitutas de colo de coronel, uma gente
festeira e faceira que procura viver para fugir do sofrer.
Mas também melodia do barco, da pequena ou
grande embarcação, cortando as águas e carregando o cacau, a bebida, os cestos
de frutas, as encomendas importadas para os coronéis, os tecidos brilhentos
para enfeitar gente feia, os temperos, tudo que vai de lado a outro, de cais a
cais, de porto a porto. E quando sai a embarcação, quando ela se distancia e
vai sumindo bem longe é como se a melodia existisse por si mesma.
Por isso mesmo Porto não é só uma melodia que
novamente estará no remake de Gabriela, mas sim a essência visual da história,
contando em acordes, numa perfeita visualização, os passos da bela morena
agrestina caminhando de trouxa na mão em busca da sorte em Ilhéus. E ali a flor
se misturando aos frutos do mercado, aos olhares que não se cansam em mirar. E
depois a saga, a sina, o destino de um povo numa trama de aflitiva beleza.
Ao lado de Alegre Menina - de autoria de
Jorge Amado e Dori Caymmi, e interpretada por Djavan -, Porto é romance, é a
própria trama musicada. Basta ouvi-la e fechar os olhos. E logo o barco ancorando
no porto, logo o passo pelo recôncavo, logo a morena brejeira encantando a
vida, subjugando coronéis, trazendo uma receita de amor para o nosso deleite.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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