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quarta-feira, 26 de setembro de 2012

BAÚ DOS TEMPOS (Crônica)


                                               Rangel Alves da Costa*


Meu bisavô deixou para o meu avô, e este repassou ao meu pai o velho, antiqüíssimo baú familiar, que um dia foi do pai do meu tataravô. Pela sucessão das doações hereditárias, certamente que este baú algum dia viria parar em minhas mãos.
Sabendo muito bem que aprecio tudo que é antigo, que sou colecionador de retalhos dos tempos passados, antes da hora no momento natural para que pudesse acontecer, a velha caixa amadeirada foi colocada sob minha guarda. Não só guarda como disposição.
Diferente do que sempre acontecia, pois uma geração repassava a outra como herança familiar e sob a condição de que mais tarde fosse repassado à geração seguinte, quando recebi o baú veio junto a sentença de que dali em diante eu poderia dispor da doação como bem desejasse. Somente mais tarde entenderia o porquê.
Verdade é que não posso ver nada dos tempos idos e que me cause sensação de presença daquelas origens que não tenha vontade de pedir, implorar, adquirir. Tenho oratório, tenho uma preciosidade num caderno de partituras de mais de duzentos anos, tenho cartas, retratos, diários, lamparinas, santos já carcomidos pelo calendário. Tenho muito mais.
Mas com aquele baú era diferente. Já o conhecia desde o quarto do meu avô, dentro do guarda-roupa, escondidinho. Molecote, danado e cheio de curiosidade, tinha uma vontade danada de arrumar uma chave que desse naquele portal da história familiar. Mas nunca consegui.
Do mesmo modo quando veio parar em minha casa, só que agora já bem mais ajuizado, apenas colocava o baú sobre a cama, no quarto fechado de meus pais, e ficava o tempo que podia imaginando o que podia estar ali dentro. Lançava o olhar de canto a outro, chegava o ouvido pertinho da madeira, cheirava por cima, e até fazia esforço para balançá-lo. Nada se mexia por dentro e sempre parecia apenas o peso da madeira. E isso era o que mais me instigava.
Já não morava mais com os meus pais quando recebi o baú das mãos do velho. E quando este me falou que dali em diante não havia mais obrigação de repassar aos meus filhos, e estes aos filhos destes, e assim por diante, logo imaginei que enfim minha curiosidade seria plenamente satisfeita. E logo fiz planos para abrir a tranca da velha madeira assim que chegasse em casa.
Ao abrir a porta e colocá-lo cuidadosamente em cima do sofá, ainda persistia essa ideia de imediato desvendamento daquele mistério familiar, talvez segredos contidos ali dentro e passados de geração a geração. Mas se fossem segredos, o meu pai já os conhecia, e desse modo eu precisaria também conhecê-los. Contudo, uma dúvida inesperada surgiu: cadê a chave? Verdade é que nunca tinha ouvido ninguém falar na tal chave.
O que fiz em seguida foi olhar cuidadosamente a tranca e logo percebi que o lugar do buraco do primitivo cadeado há muito que não havia recebido a visita de qualquer chave. Estava de tal modo intacto que nem parecia haver qualquer buraco ali. Foi quando telefonei ao velho e perguntei se sabia alguma coisa sobre a chave. Então, mais uma surpreendente revelação: desde o avô do meu bisavô que ninguém havia aberto aquele baú. E acrescentou que eu deveria abri-lo, e por isso me havia doado sem qualquer condição.
Que aflição, que angústia nesse momento. Talvez aspectos importantíssimos da história familiar, de tempos muito antigos confiados a mim, e agora a minha incumbência de desvendar o que quer que fosse. Passei mais de uma hora numa dúvida terrível, rondando o baú, tocando-o, tencionando ir buscar uma chave de fenda para abri-lo de vez. E num segundo decidi que não.
Se ali existem segredos não sei, nem ficarei sabendo por curiosidade nem por minhas próprias mãos. O que estiver ali dentro, seja nada ou seja tudo, continuará adormecido no seu interior, no leito de sua história. Certamente que nenhum baú familiar seria repassado de mão a mão se dentro dele não houvesse algum coisa importante muito bem guardada.
Talvez seja um pergaminho preso à madeira, uma joia adormecida num canto, um fio de cabelo solto, um sopro da primeira geração. Não sei. Guardarei comigo essa dúvida como cuido das minhas velharias. E como é bom viver o passado assim. Mas talvez um dia o meu filho tenha mais coragem, ou o seu neto, ou o seu bisneto...
Deixo o baú ser baú. Que lá dentro continue vivendo o que não merece a incompreensão do tempo presente.



Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Carlos A. Lopes disse...

Gostei demais do seu texto. As vezes lembro de objetos antigos que existiam nas casas dos meus familiares mais próximos e que muitas vezes foram parar mno lixo. Enfim só me restou as lembranças. Ainda bem. Um abraço amigo Rangel.