*Rangel Alves da
Costa
Nada
possui a eternidade desejada nem a serventia que se almeja, pois tudo sempre
limitado ao uso e ao poder de permanência. A verdade é que as coisas
envelhecem, se tornam frágeis, viram escombros, desaparecem. Assim com as
fortalezas, com as muralhas de guerra, com os casarões e os casebres, com a
construção forte e frágil. Contudo, assim não deveria acontecer com a pessoa
humana, quando desprezada e relegada ao fim antecipado.
Mas também
com relação às coisas, grandes ou pequenas, que tantas serventias tiveram, mas
que, pelos exaurimentos do tempo, foram sendo vistas como inúteis,
desnecessárias, até desprezíveis. Uma roupa velha de trabalho, por exemplo, só
é deixada num canto quando seus rasgões já não permitem uso. Ainda assim fica
guardada como recordação e agradecimento pela serventia na luta. Mas outros
preferem simplesmente descartar tudo aquilo que não esteja sendo de proveito
imediato.
Daí os
tantos abandonos e abandonados. Tanta coisa, tanta gente, tudo assim pela vida.
E o esquecimento e o desamparo sempre pelo desinteresse, por que em nada afeta
a vida do omisso em si, por que tanto faz como tanto fez que assim acontecesse
ou não. O que não tem serventia não mais desperta qualquer cuidado, o que não
traga retorno não merece ser valorizado. Tudo tratado como tralha, como traste
velho, como resto imprestável, como nada.
Filhos
abandonam pais, pais abandonam filhos. Sempre uma tristeza quando se noticia
que filhos, na tentativa de se verem livres de seus já idosos genitores, acabam
colocando-os em asilos e depois fazem de conta que sequer existem. Sempre uma
angústia danada ao saber que pais simplesmente jogam seus pequeninos à sorte do
mundo, em busca de esmolas ou pequenos furtos, e ainda os castiga quando o
trabalho do dia não é lucrativo. Assim por que abandono não é só
distanciamento, mas a negligência com a vida.
Costumeiramente,
os abandonos familiares levam a grande número de abandonados no mundo. As
esquinas, as marquises e as calçadas e vielas estão cheias destes relegados ao
desprezo. Primeiro a negação familiar, depois a deprimente repulsa social.
Meninos e meninas perambulando pelo mundo, dormindo debaixo da lua, entregues à
sorte dos desprezados, e tantas vezes feridos na alma, no corpo, na esperança.
E quase sempre usados para satisfação dos mais perversos e pervertidos
instintos.
Tudo o que
é abandonado vai corroendo antes do tempo. Mesmo que nada esteja imune ao
perecimento, pois próprio da existência um começo e um fim, há uma dolorosa
antecipação da ruína toda vez que o cuidado esmorece. Quem ama cuida, quem
gosta preserva, quem sente abnegação busca conservar a todo custo. As preciosas
relíquias surgem assim, pela conservação do que se tem como valor ao coração.
Diferente ocorre com a desvalorização pelo envelhecimento, pelo desuso, pelo
simples abandono.
Que se
tenha em mente o velho carro-de-bois que depois de tanto auxílio e serventia
agora resta esquecido debaixo de um pé de pau. O jumento que foi esquecido e
relegado às distâncias depois que a motocicleta lhe tomou o lugar de montaria e
transporte. O velho candeeiro deixado num canto dos fundos da casa pelo desuso
após a instalação do bico de luz, para depois ser jogado ao lixo. A fiel
companheira de muitos anos de união, inseparável na luta e no convívio, que de
repente é rejeitada pelo ilusório surgimento de uma novinha.
Que se
tenha ainda em mente o velho livro e o livro mais velho ainda. O primeiro, tido
como um livro qualquer, de tanto esquecido e abandonado vai se enchendo de
traças, sendo corroído folha a folha, até virar pó. Mas o segundo, pelo fato de
ser especialmente admirado, é sempre cuidado, limpo, relido, folheado,
conservado com esmero e carinho. Em casos assim, observa-se que o zelo assume
função primordial nas permanências e permite uma existência maior a tudo aquilo
que não é jogado aos porões do esquecimento.
As pessoas
também envelhecem mais cedo e vão se exaurindo pelas situações de abandono. Um
abandono chamado fome, pobreza, miséria. Ou quando vão se desprezando por conta
própria. Um desprezo íntimo chamado vícios, drogas, permissividades, abusos de
todos os tipos. Há gente que se abandona completamente, que chama para si as
traças do mundo e se finda como um resto que passou pela vida e não viveu.
Por isso
mesmo é que se há de gostar de tudo, de tudo aquilo que seja útil, traga prazer
e felicidade, e mais tarde possa servir como boa recordação. Uma vida utilmente
vivida é imortal por si mesma. O que foi de serventia algum dia jamais será
esquecido. Daí os convívios da infância, as experiências adultas, os amores, as
paixões, os desejos tantos. Recordações que surgem por que não houve abandono
do passado. Aliás, não existe passado, apenas esquecimento.
As traças
avançam sobre tudo, são famintas, vorazes. Destroem vidas, passado, presente,
tudo. Que nada fique ou permaneça ao abandono. Não deixe que devastem o seu
livro maior e seu bem mais precioso: a vida.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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