*Rangel Alves da
Costa
Os
estudiosos consideram por duas vertentes o ato de comer carne humana. Dizem que
há antropofagia quando o homem se alimenta da carne de outro homem, e que há
canibalismo quando este devora, ainda vivo, outro homem. A diferença estaria na
carne viva ou não. Comer apenas a carne é antropofagia, mas comer a carne viva
é canibalismo. Uma sutileza que em nada modifica a presente análise.
No
presente texto, tanto o termo antropofagia como canibalismo será utilizado
indistintamente, vez que se objetiva mesmo é demonstrar a permanência deste
macabro ritual no tempo presente. Contudo, apontando sua existência nas ações
humanas que vão além do apresamento para fins ritualístico ou alimentar, através
de práticas que, direta ou indiretamente, acabam devorando o outro ser humano.
E assim
por que a vida moderna, na realidade presente, possui muito mais rituais
antropofágicos e canibalescos do que no passado. Disso não há que se duvidar. E
as provas são muitas: o ser humano é devorado a cada instante, na feira, no
mercadinho, perante o atendimento na repartição pública, nas escolas, nos
hospitais e postos de saúde, na insegurança de cada instante e por todo lugar.
O ser humano é comido vivo no preço do remédio, na conta de água e luz, na
vestimenta mais simples e até num cafezinho de botequim.
O preço do
feijão, por exemplo, é canibalismo explícito, é antropofagia contundente.
Retirar, pelo elevado preço, um alimento básico e tido como essencial da mesa
do povo é devorar sua dignidade alimentar. Não somente no feijão, pois toda vez
que alguém vai à feira sempre retorna diminuído, impotente, exaurido, devorado
por dentro. Daí que o termo morrer de fome, antes tido como inaceitável num
país de governantes que tanto alardearam o fim da pobreza e da miséria
absoluta, tende a se tornar uma realidade em canibalismo inverso: comer a si
mesmo por dentro até morrer de fome.
Devora-se
sem medo, sem dó ou piedade. A canibalização é tamanha que nem mesmos os canibais
se livram de ser devorados. De vez em quando arrancam a cabeça de um
governante, destripam políticos e autoridades, expõem as vísceras de um
putrefato poder. No caldeirão fervente vão caindo delatores e delatados,
propineiros e propinados, mensalistas e mensaleiros. Um devoramento sem fim. E
por todo lugar vão se acumulando entranhas de intocáveis e até perigosas
jararacas.
Ora, a
antropofagia é coisa do passado, de sociedades arcaicas ou primitivas, alguém
poderia dizer. Sim, mas não há uma sociedade mais primitiva e arcaica do que a
atual. Não há mundo mais incivilizado, bárbaro e cruel que este do tempo
presente. Mata-se por brincadeira, por fundamentalismo religioso, por opção de
desumanidade e covardia. Aqueles bárbaros do passado canibalizavam por crenças
e até por sobrevivência, mas o moderno porque se arvora do direito à vida do
próximo.
Com efeito,
consta dos livros que o canibalismo é a relação desarmônica quando um indivíduo
mata outro da mesma espécie para comer. É, em sentido amplo, ritual onde se
devora o ser humano. Normal entre alguns povos, a cerimônia consistia em
aprisionar inimigos e devorá-los por partes, dividindo pés, mãos e demais
membros entre os integrantes da tribo. Algumas vezes jogavam o corpo inteiro em
caldeirões e depois avidamente saboreavam aquele estranho e suculento ensopado.
Entre os
primitivos, acreditava-se que devorando guerreiros inimigos estariam chamando
para si suas forças. A prática foi muito comum entre os povos mesoamericanos -
maias, astecas e incas -, bem como entre sociedades tribais africanas e
polinésias. E ainda hoje se tem notícia de sua prática em distantes
civilizações. No Brasil, coube aos índios tupinambás sua prática em maior
constância. Mas grande parte dos nativos litorâneos gostava de um prato diferenciado,
de carne chegada além-mar. Bastava que um missionário ou forasteiro caísse nos
seus apetites, então a mesa estava servida.
Sendo o
canibal aquele que pratica o ato de comer um ser vivo da mesma espécie, então
logo se tem como ser antropofágico aquele que finda a vida do outro. O
governante é o maior devorador de pessoas, pois sempre parece governar para
extinguir de vez as classes mais empobrecidas de sua nação. Dar uma esmola,
porém deixá-las em valas putrefatas e doentias é negligenciar com a vida. Negar
saúde e segurança é a maior prova de irresponsabilidade social. E tudo vai
sendo jogado no caldeirão dos aflitos ou comido ainda vivo nos seus restos
magros.
A verdade
é que todos os dias os noticiários informam sobre os novos ataques canibais, pelo
Brasil inteiro. Toda vez que um for preso porque desviou milhões, certamente
que muitos já morreram na esteira dos acontecidos. Os desvios deixaram que
remédios faltassem, que hospitais e postos de saúde ficassem entregues às
baratas, que um simples curativo deixasse de ser realizado. E, doente e
desesperançado, ainda assim sair às ruas correndo risco pela bandidagem e pela
truculência policial. Um canibalismo só.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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