*Rangel Alves da
Costa
Antecipo-me
afirmando que o termo mito aqui utilizado não se refere à fábula, ao
sobrenatural, fantasias ou deuses e semideuses de universo imaginário, mas do
mito enquanto realidade de pessoas que simbolizaram feitos históricos de
reconhecida importância nos seus contextos de ação. Neste sentido, a feição
mítica se volta à força do personagem, que se torna de caracterização heroica
ou além do comum da vida.
Assim, não
o mito da Cobra-Grande ou do Saci-Pererê, não o mito do Hércules poderoso nem
do Zeus mais poderoso ainda, mas do mito real, vivificado na importância, na
luta ou na ação, e expressado em homens e seus feitos. Também o mito, enquanto
reconhecimento pela abnegação, daquele que verdadeiramente se entregou a causas
desacreditadas, a sacrifícios e gestos por muitos renegados. Por que não
reconhecer o vaqueiro enquanto ser heroico, igualmente o mateiro e o caçador, o
pescador ribeirinho e o desbravador das entranhas matutas?
Ressoa
como mítica a expressão de ser o sertanejo acima de tudo um forte. O mito está
exatamente na força da luta, na tenacidade no enfrentamento das dificuldades e
sofrimentos. A fabulosa vida daquele que sobrevive como verdadeiro milagre ante
a pobreza e a falta de quase tudo. Tudo se torna mito à medida que se
diferencia da normalidade esperada. Neste sentido, grande parte da vida
sertaneja é mítica ao se concretizar a partir de sacrifícios e, ainda assim, tornar-se
grandiosa história.
Eis que,
em verdade, homens existem que muito se diferenciam de outros a partir dos
caminhos diferenciados que percorreram. Quando velhos profetas e missionários
nordestinos arrebanharam multidões ao seu redor, suas ações foram mitificadas
para a posteridade, pela crendice ou fanatismo popular, ou não. Quando iletrados
libertários se insurgiram contra regimes, governos e governantes, injustiças e
perseguições, suas lutas inglórias permitiram reconhecimento mítico.
Quer
dizer, os feitos extraordinários, difíceis ou encorajados pela justificativa da
luta, tendem a ser mitificados. Com o passar dos anos, a oralidade vai
transformando ações em feitos quase lendários, e assim vão nascendo verdadeiros
heróis ou mitos populares, a exemplo de Padre Cícero Romão Batista, o Santo
Nordestino; Frei Damião, o Padroeiro Sertanejo; Antônio Conselheiro, o da Boa
Causa; Luiz Gonzaga, o Rei do Baião; Virgulino Lampião, o Cangaceiro Maior.
Até mesmo
o coronel nordestino, senhor do mundo e além, alcança importância mítica. Para
o bem ou para o mal, inegável a participação do coronelismo na formação nordestina.
Daí o surgimento de nomes até hoje recorrentes nos livros sobre o cangaço, o
mandonismo, o clientelismo, o voto de cabresto, o poder político e pessoal.
Nomes como Chico Heráclio, Chico Romão, Delmiro Gouveia, Veremundo Soares, Zé
Abílio, Horácio de Matos, João Maria de Carvalho, João Sá e Elísio Maia.
Tais
coronéis não foram somente senhores de casa-grande, latifúndio e poder, mas
determinantes no destino de acontecimentos, da política e da história. Suas
ações, por que mandavam e desmandavam, se faziam senhores da vida e da morte,
comandavam a vida social e política nos seus contextos de ação, acabaram
determinando um forçado reconhecimento nos seus tempos e adiante. E
principalmente porque a vida moderna ainda não se desvinculou totalmente
daquela de feição coronelista.
E não há
região brasileira que tenha produzido mais mitos que o Nordeste. Talvez pela
crença maior de seu povo, sua fé e força de preservação dos feitos que lhe diz
respeito, a verdade é que o povo nordestino - e mais de perto o sertanejo -
tende a quase sacralizar alguns personagens. Não precisa que a História assim
os reconheça nem que a simbologia os eleve a vultos nacionais, bastando que
esteja enraizado na sua memória.
Nos
sertões, aqueles mesmos sertões descritos por Euclides da Cunha, Graciliano
Ramos, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Gilberto Freire, Jorge Amado e
tantos outros, onde a História é sempre permeada de luta, de religiosidade, de
sacrifício e de esperança, o mito surge mesmo no inimaginável, de repente
elevando à categoria mítica personagens controversos e que facilmente
transmudam de herói a bandido.
Mesmo
assim, ainda que o mito seja reconhecido e devocionado apenas por alguns, é o
seu enraizamento como tal, a sua constância afirmativa, que provoca a sua
valorização. E, neste passo, também o reconhecimento de que os lendários
personagens da história nordestina tiveram existência delimitada, pois
dificilmente surgirão figuras de tamanha proeminência que possam se enraizar
como mitos perante as camadas mais populares da região.
Haveria de
se indagar, então, o porquê do não surgimento de novos mitos. Ora, os tempos
são outros, muito mais desenvolvidos, de distâncias mais curtas, quase sem
espaço para surgimento de contextos sociais únicos e personagens que se
solidifiquem perante meios delimitados. Não há mais espaço para os grandes
profetas, os grandes beatos, os grandes justiceiros. Nos sertões sem limites,
tudo o que acontece já nasce generalizado. Permanece apenas o que enraizou no
sentimento do povo.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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