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quarta-feira, 6 de julho de 2016

A ORIGEM DO MUNDO OU A GENITÁLIA DE COURBET


*Rangel Alves da Costa


Por merecimento ou não, a arte, através de seus críticos, de uma hora pra outra pode cair no desprezo ou ser elevada ao mais alto reconhecimento. Depende sempre da visão que se tenha da escultura, da música ou da pintura, só para citar alguns nomes. Com esta última, que é uma arte visual por excelência, de apreciação pelo próprio olho, muitas vezes a crítica feita chega a espantar.
E espanta principalmente quando a obra em si não parece merecer a glorificação obtida. Daí se indagar: seria a arte o nome do artista, a sua fama, aquilo que o crítico deseja que seja, ou seria o que verdadeiramente expressa? Tenha-se, neste sentido, que o nu na pintura sempre tende a ser vulgarizado acaso não seja obra de um famoso. Então a crítica logo carimba de arte pornográfica, de mera erotização ou mesmo de chinfrim criação artística.
E quando a nudez vai além da mera retratação para adentrar no próprio íntimo da sexualidade? Deveras um caminho muito perigoso ao artista, pela crítica e pela aceitação social. Desse modo, quem haveria de imaginar que em pleno século XIX, na efervescência de pinturas com cenas bíblicas, históricas e mitológicas, um pintor famoso se atrevesse a retratar uma mulher de pernas abertas, deixando à mostra sua genitália? Ademais, com cores fortes e pinceladas firmes, num realismo que deixaria boquiaberto qualquer crítico de gravatinha.
A classe burguesa de então, com suas madamas fingindo envergonhamento, certamente tapava os olhos ou tremulava freneticamente os abanos. E as enrubescidas matronas diziam: Isso não é pintura, é uma imoralidade explícita. Uma arte pequena e indigna de qualquer apreciação e destinada ao lixo ou aos folhetins mais indecorosos. Deveria ser expressamente proibido que tamanha obscenidade chegasse aos olhos da casta sociedade.
Logicamente que as alusões acima remetem à pintura do pintor francês Gustave Courbet (1819-1877) e suas obras O Sono e A Origem do Mundo. Na primeira, duas mulheres nuas, deitadas numa cama, adormecem com os corpos entrelaçados, insinuando lesbianismo. A segunda, a mais famosa, retrata uma mulher nua dos seios acima, deixando à mostra, e explicitamente, sua genitália. O nome criação do mundo indica que é a partir dali, da vagina, que o mundo é criado.
Certamente um espanto à época, como ainda hoje ocorre perante muitos. Mas enquanto isso, enquanto sua arte servia muito mais como sobressalto que admiração, o artista simplesmente lavava suas mãos. Ora, apenas uma pintura. Os grandes mestres da pintura mundial foram também exímios em retratar corpos nus, mostrando suas intimidades, e sem por isso serem diminuídos. Da Vinci, Rubens, Tiziano, Giorgio Vasari, Magritte, Modigliani, Goya, Cranach e tantos outros, não recobriram com vestes muitas de suas criações.
Cita-se, por exemplo, os quadros de nudez mais famosos como sendo as Vênus, de Giorgione e Ticiano; Nascimento de Vênus, de Boticelli; A Banhista de Valpinçon e Odalisca, ambas de Ingres; As Banhistas, de Renoir; Três Banhistas, de Cézanne; Nu no Ateliê, de Matisse; Olympia, de Manet; Retrato de Mulher, de Rodolfo Amoedo; Mulher Nua, de Trutat. Não se pode esquecer a nudez total do Davi esculpido por Donatello.
Modigliani especializou-se em nus, na nudez de mulheres esbeltas, belas, sempre deitadas, e todas com cores quentes, em tons alaranjados, como se pretendesse da maior expressividade à pele. Suas mulheres são eróticas, de um erotismo nas formas e traços, como se emancipadas no seu tempo e graciosamente posando para a perpetuação dos seus corpos, sexos e desejos.
Mas nada igual à genitália de Courbet. Óleo sobre tela de 1866, realizada por encomenda de um diplomata que desejava ter uma obra de arte que fielmente retratasse a nudez e o erotismo feminino, alcançou sua glória pelo realismo na retratação. E tão fiel é a pintura que grande parte da tela mostra exatamente uma vagina peluda, de uma mulher de pernas abertas em cima de uma cama, com as vestes brancas levantadas além dos seios. Além da sexualidade explícita, um erotismo com toda a crueza na expressão. Mas por que impressionar tanto se apenas uma genitália em sua exata forma?
O conservadorismo falsamente puritano sempre cuidou de menosprezar esta obra de Coubet. A explicitude do corpo daquela forma, tão realista e tão nua, foi costumeiramente vista como um verdadeiro atentado à moral social. Contudo, apenas uma tela retratando parte do corpo de uma mulher deitada e o seu sexo na sua forma íntegra e real. Um gesto de qualquer mulher nua, uma vagina de qualquer mulher que não se depile com frequência.
Courbet disse apenas que é do sexo feminino, de sua genitália, que nasce a vida humana. E por isso mesmo retratou essa porta sem quaisquer disfarces, com lábios genitais e tudo o mais. Erótica, apelativa, explícita? Sim. Mas não pornográfica, pois apenas arte. Ademais, o que é a pornografia senão uma arte do corpo, ainda que muitas vezes corrompida pela perversão?


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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