SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 14 de julho de 2016

NA PORTEIRA DO CURRAL


*Rangel Alves da Costa


Nem tudo vai envelhecendo no passo da idade. E certamente está na memória toda a permanência da vida inteira, sempre renovada pelo desejo de revivência e de recordação. Mesmo com cinquenta, oitenta ou cem anos, ainda é possível, através da memória, ser novamente criança. Daí que o poder de recordar, de reviver e voltar no tempo, assume fundamental importância no contexto existencial.
Há, pois, a caminhada pela estrada, mas também o passo que ficou distante e lá continua. Desse modo, viver os novos dias não significa abdicar do passado nem deixar de ser, ainda, o todo que um dia foi. Basta que se valorize as memórias, as boas lembranças, que não se desaparte da infância, da juventude, dos melhores anos da vida. Não há melhor alimento à alma que a doce recordação do passado.
É lá, lá no começo da estrada, que ainda mora a alegria, o prazer, o encanto, a felicidade. É lá que mora a meninice, a criancice, a vida em flor. A idade posterior jamais encontrará o mesmo sentido nem a mesma magia. Necessário, então, que a porta do passado esteja sempre aberta para, através dela, haver maior significação no tempo presente, e assim poder dizer: Meninos, eu vi, eu vivi, eu fiz, eu senti prazer em ver, em viver, em fazer!
Por isso mesmo que de vez em quando me desaparto um pouco de mim e procuro caminhar ao passado, ao que fui e vivenciei um dia. Minha infância na cidadezinha sertaneja, minhas brincadeiras, meus bons amigos, meus afazeres descompromissados com as realidades adultas. Meus banhos debaixo da chuva, meus momentos dentro das águas do riachinho depois das cheias, meu cavalo de pau, minha bola de gude, minha vontade de não crescer. E também das tantas vezes que eu acompanhava o meu pai às suas terras.
Meu pai, um dia, e quando ainda vivo, possuiu muitos bens, algumas propriedades, fazendas de mato e gado, como se diz por aqui no sertão sergipano. E eu, quando meninote, muitas vezes o acompanhava nas tardes de vaqueirama. O vaqueiro ia recolhendo alguns dos animais, com seu aboio bonito e dolente, para que passassem à noite na proteção do grande curral. Geralmente bezerros, animais novos, vacas prenhes e de leite, pois o restante continuava debaixo das sombras e mais tarde adormecendo no meio do tempo, sob o negrume enluarado.
Meu pai, geralmente com um caderno onde anotava os nomes de cada bicho (Pintada, Lua Sertaneja, Formosa, Moça Bela, etc.), e eu pelos arredores da porteira do curral ou mesmo trepado nas vigas de madeira de separação. Também retornava ao amanhecer, logo cedinho, para a ordenha das vacas. Enquanto os vaqueiros e seus filhos iam puxando os peitos grandes das vacas e o leito jorrando num balde, eu me aproximava com prato de estanho com um pouquinho de farinha. Descendo do ubre, o leite esguichava quente, jorrava no prato, depois tudo misturava e saboreava como inesquecível prazer.
Depois, já mais crescido, de repente cismava e ia sozinho, caminhando, até a fazenda. Gostava de conversar com os empregados, com o vaqueiro, a esposa e filhos. Perguntava sobre tudo. Instigava-me aqueles mugidos, aqueles berros, ora lamentosos, ora mais alongados. Intricava-me saber o porquê de ao entardecer apenas uma parte do rebanho era levado ao curral e a outra ficava do lado de fora. Queria saber se o bezerro sofria ao ser desapartado da mãe e se eles conheciam o gado pelo som do chocalho.
As respostas iam chegando e cada vez mais eu me afeiçoava por aquele viver sertanejo. Passava longos instantes caminhando pelas paisagens, em meio a pastagens áridas, pedras e cactáceas, silenciosamente conversando com aquele mundo encantador. Mas depois os rebanhos foram sumindo, a fazenda entristecendo, não havia mais aquela riqueza de antes. Até restar somente a propriedade, as casas e a família vaqueira. E esta lá permaneceu até se mudar de vez para a cidade.
Hoje ainda recordo de tudo como se estivesse à porteira do curral. Sinto o cheiro do gado, da terra, do leite quente sobre a farinha. E, entre entristecido e feliz pelo vivenciado, reconheço que não poderia viver sem aquele passado. Mas indago: Tempo, tempo, o que fizeste da vida?


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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