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sábado, 6 de março de 2010

A DEFESA DOS HORRORES (Crônica)

A DEFESA DOS HORRORES

Rangel Alves da Costa*


Chamada a se manifestar nos autos da demanda em que a sociedade procura resguardar seus direitos ao convívio pacífico, sem guerras, sem atentados, sem violência, sem ameaças à dignidade e à integridade física dos cidadãos de todo o mundo, a defesa dos horrores, objetivando demonstrar que não são os únicos que avocam para si o direito de eliminar a vida a todo custo e por todos os meios, apresentou sua defesa, em forma de contestação, como a seguir se expõe.
Segundo a defesa dos horrores, não é nenhuma novidade que o homem seja o seu próprio algoz. Desde os tempos bíblicos que os indivíduos se digladiam, armando tribo contra tribo, levando a devastação aos campos de pastores empobrecidos e fulminando raças pela honra religiosa. Os homens das cavernas, agindo por instinto, faziam do desafeto o objeto de explosão do seu desconhecimento de censura, e nem por isso foram condenados pela história. Todas as guerras foram e são motivadas por motivos pessoais, transformadas depois em questões de defesa somente para justificar a sede incessante do homem de embrutecer, pegar na arma, ter o irmão de ontem como inimigo de hoje e dizimar raças, povos e nações. A história depois escolhe seus heróis, mas esquece sempre que todos os chefes envolvidos motivaram maior ou menor número de mortes.
Sustenta a defesa que as ações humanas podem ser sintetizadas na clarividência do filósofo inglês Thomas Hobbes ao afirmar "Homo homini lupus", o homem é o lobo do próprio homem, e "Bellum omnium contra omnes", é a guerra de todos contra todos. Restaria a esperança que o pensador estivesse apenas expondo um juízo de realidade que jamais poderia ou deveria existir, pois inadmissível imaginar que o engenho humano, a sua inteligência e a sua capacidade de aperfeiçoamento das técnicas fossem exatamente para fazer proliferar as armas de destruição em massa, as bombas atômicas, os foguetes teleguiados, as explosões comandadas pelo computador. Daí essa insegurança e angústia nos seres humanos, procurando fugir das armadilhas construídas pelo próprio homem, mas infelizmente tendo a consciência de que a todo instante os engenheiros de guerra estão inventando uma nova e poderosa arma para atingir bem no coração do próximo.
Culpar os horrores e as barbaridades por que, se todos são horrendos e bárbaros e fazem disto atos de glória e bravura? Indagou a defesa. As cruzes, estrelas e outras honrarias ostentadas no peito dos comandantes militares nada mais são do que a soma das atrocidades praticadas, do que o reconhecimento pelas estratégias que se concretizaram pela vitória da dor e do sofrimento do povo mais carente e desprotegido.
Quem manda invadir, submeter, subjugar, ferir e matar nunca vai fazer o reconhecimento do campo de batalha e saber quem vai morrer ali. Do mesmo modo, ninguém chega de carro preto, terno, gravata e seguranças na linha de frente de ataque ou de contra-ataque. Quem aponta o dedo no mapa e dá as ordens para exterminar sempre está confortavelmente instalado no seu luxuoso gabinete, na sua mesa oval, rodeado por ordenanças. Ao fim do dia lhe chega às mãos o relatório com o número de mortos e feridos. Passaram de mil, e isso vale um brinde.
Por que pretender fazer dos horrores e das barbaridades os únicos culpados, se no júri da racional consciência humana faltam os verdadeiros réus? Ou esqueceram que dependendo de quem pratica ou manda praticar os crimes, a culpa sempre é da vítima, quem debaixo de cova rasa não pode defender-se? É pena que a sociedade tenha ou finja ter a memória muito curta, deixando esquecer de um dia para o outro a violência desnecessária, desumana e abjeta praticada por carrascos travestidos de policiais, de falsos garantidores da ordem pública. Ainda chamam de abordagem o soco desferido, o tapa na cara do pai de família, o empurrão violento na lavadeira que passa, o chute na criança que só estava brincando, o tiro dado à queima porque aquele moreno trabalhador parecia ter cara de bandido? Ainda chamam tais costumeiras práticas de abordagem policial, perpetradas por homens preparados e atendendo sempre aos princípios dos direitos humanos? E mesmo assim ainda insistem em dizer, afirmar com veemência, como neste caso, que os horrores são aqueles praticados pelos outros.
Por fim, indagaria ainda: Afinal, em que estágio da civilização estamos onde os que sofrivelmente vão passando pela vida são atingidos por balas perdidas; onde imperam ainda o preconceito, discriminação e a intolerância, dentre outras práticas racistas; onde qualquer discussão de trânsito é motivo para matar ou morrer; onde pessoas perdem a total noção de respeito a si próprias, aos seus filhos menores e à infância dos outros e continuam praticando a pedofilia?
Que civilização é esta Excelência, onde os traficantes de drogas se arvoram no direito de querer exterminar grande parte da juventude; onde os ladrões e outros meliantes afins deixaram suas esquinas escuras e passaram a se instalar também nos confortáveis gabinetes do poder; onde os governantes matam por negligência e omissão na saúde e na segurança pública e ninguém jamais é culpado e muito menos apenado; onde a lei só prevê pena para o abandono material praticado por familiar e não pelo governantes ou quem de direito que deixam menores, idosos e inválidos totalmente desassistidos, entregue à própria sorte dos injustiçados?
Portanto, não se pretende nessas razões de defesa eximir de culpa quem possivelmente seja culpado. Contudo, acusar somente a barbárie pela barbárie seria gravosa injustiça, principalmente quando não se pode esquecer que a maior culpada de tudo é a própria sociedade, que com sua arrogância e incivilidade vitimou irreparavelmente todo o presente e futuro do homem.
Os horrores foram eximidos de pena. A sociedade está pagando a pena que todos merecem. De forma perpétua.




Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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