FALE ASSIM MESMO!
Rangel Alves da Costa*
Já imaginaram quantas palavras deixaram de ser ditas simplesmente porque quem deveria pronunciá-las não o fez por medo ou vergonha? Já pensaram quantas mensagens ficaram somente no vão das ideias porque não foram expressadas? Quantas e quantas palavras únicas, frases ou enunciados maiores não saíram da boca porque esta, temendo falar errado, não disse o que deveria?
Até hoje não me conformo com essa frescura de dizer que esta ou aquela pessoa fala errado, não sabe falar direito, tem fala de caipira ou de matuto, não abre a boca pra não tropeçar no português. Linguisticamente falando, não há nada mais preconceituoso do que isso. Preconceito porque, ao justificar através das normas cultas da língua, nada mais fazem do que esquecer que as palavras, a linguagem e o que se tem como culto na língua nasceram precisamente de palavras despidas de qualquer cobrança relativas a ela; nasceram daquilo que o primitivo dizia e o outro entendia, sem ser bonita ou nada, certa ou errada, mas apenas palavra; nasceram da necessidade dos povos em se expressar e não do convencionalismo para se expressar de determinado modo, porque assim seria mais bonito e sinal de inteligência. Foi a gramática que promoveu essa discriminação toda, e que até hoje tenta erroneamente balizar o que seja um falante inteligente, menos inteligente ou burro, na mais pura expressão do termo.
Ora, se estou com sede pido ou peço um copo dágua, não mato a sede com a hipéborle; se estou com fome vou coisar as panela, cunzinhar quarqué coisa, encher o bucho e pronto, não preciso esmolar na onomatopéia; se estou cansado me aprochego num tamborete, me aderreio numa cadeira ou me amoito na rede, mas não vou descansar na derivação parassintética; se estou enjoado é porque estou imburrado mermo, e não com locução pronominal indefinida. Se os outros entendem o que se fala, onde estará, então, o erro?
O erro deve estar no surgimento da gramática, com o sânscrito de Panini, por volta do séc. IV a.C., ou com os gregos, no séc. V a.C. Pelo seu conceito logo se vê que seria um instrumento para dificultar a liberdade da língua: é a exposição metódica das regras que ensinam a falar e escrever corretamente a língua; é o conjunto de regras, observadas em um ou mais idiomas, relativas aos sons ou fonemas, às formas dos vocábulos e à combinação destes em posições; é um ramo da lingüística que estuda a relação das palavras dentro da frase ou oração. Sintetizando, é o conjunto de regras usadas em uma língua.
Quando a gramática requer para si o poder impositivo de dizer que o que você fala está errado é porque quer limitar a todo custo o poder de expressão que todos possuem. O pior é que até os conceitos gramaticais são difíceis de serem aprendidos e falados. Veja só que inteligência do homem, que criou a etimologia (etimo: origem; logia: estudo) com os seus prefixos, sufixos e radicais, para impor regras gramaticais como: fonética, ortografia, crase, tonicidade, curva melódica, parônimos, hipônimos, hiperônimos, polissemia, neologismo, preposição, conectivo, adjunto adnominal, verbo transitivo direto e indireto, pleonástico, substantivação etc. Quer dizer, criam verdadeiros monstros e querem jogar a culpa em quem apenas quer falar como sabe.
Nem os próprios estudiosos da gramática se entendem sobre a necessidade de se impor isso tudo ao povo. Já imaginaram um estudante do sertão nordestino que chega na escola com fome e a desqualificada professora exige que diga o significado de ósculo, de abnegação ou de circunlóquio? Ou que diga onde está o erro na seguinte frase: Pedro e João está com fome e sede. É, pois, um absurdo que situações como tais possam ocorrer.
Vamos colocar as coisas no seu devido lugar. Se digo nóis vai ali, ela me falou-me, a situação tá pecuária, os bicho vão tudim morrer de fartura de tudo, vou no rio, a gente queríamos, as coisas é assim mermo etc., será que o outro não está entendendo o significado do que quero dizer, o sentido das minhas palavras? Mas não, é burro quem for na cidade, porque o certo é ir à cidade. Ora, santo Deus, se eu sei o quero falar é você, professor ou qualquer outro sabidão, que vai me dizer como eu deva dizer? É preciso respeitar a língua dos outros, pois língua é liberdade, como ensina Luft.
Em Portugal, por exemplo, mesmo após a unificação ortográfica, algumas palavras são escritas de modo diferente do que se observa no Brasil (acto, ato, direcção, direção). Daí se vê que nem mesmo os lingüistas e lexicólogos se entendem. Ademais, outras vezes o que fazem é simplesmente matar certas palavras, colocando-as em desuso, porque assim desejam. Sinhá não existe mais, agora é senhora; moçoila virou sinônimo de coisa feia, agora é adolescente; só matuto diz vosmicê, e nem os doutos usam vossa mercê, pois agora é na base do excelência, do ilustre, do preclaro. Outro dia uma senhora do interior cismou que não estava mais desquitada, simplesmente porque o direito aboliu tal expressão, ou seja, divorciou da língua.
Agora, triste mesmo foi quando o garotinho pobre chegou perto do governador que estava visitando o sertão e falou: "Seu Zé, nóis tá tudo com fome aqui e os povo todinho quer que o sinhô dê um adjuntório a nóis". E o governador imponente respondeu: "Meu filho, vá para a escola estudar para saber pedir esmola falando certinho, está bom?". "Tá bom nada, que o sinhô nunca construiu uma escola aqui".
Por essa e por outras, fale sem medo, diga o que quiser e como souber, não tenha medo das suas palavras, não fuja da vontade de expressar o que bem entender. Ora, você não ouviu o que eu disse, pelas palavras que usei não sabe o que pretendo, o que quero, o que desejo? Então porque essa cara, se ouves o que não deveria do seu próprio espelho?
Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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