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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 12 de março de 2010

PAISAGENS DE MARIA (Crônica)

PAISAGENS DE MARIA

Rangel Alves da Costa*


Lentamente seguindo pela estrada e os olhos faziam uma viagem paralela através da janela. Percurso de carro, caminhão, ônibus, metrô ou trem? Não, é na condução da vida que vai, é no transporte dos dias que segue, é no veículo do destino que embarca.
Ontem Maria resolveu viajar. Chamou João, Zefinha, Pedro e Lurdes, mas ninguém quis viajar com Maria. O sossego de casa é melhor que andar por aí, correr pela vida é melhor que viajar por aí, farrear com os amigos é muito, mas muito melhor, do que seguir por aí. Todo tinham os seus motivos, como sempre todos encontram motivos para ficar no seu lugar, e Maria viajou sozinha.
Maria não tinha passagem, não tinha vintém, não tinha mala, não tinha pressa, não tinha bagagem, não tinha ninguém esperando. Mas Maria tinha esperança, tinha força de vontade, tinha coragem, tinha vontade própria, tinha um sonho imenso de ser muito além do que simplesmente ser. E sabia que ela mesma estaria esperando por ela. Que abraço Maria daria em Maria.
Maria não estava longe nem estava perto. Sabia somente que estava numa fronteira entre o que tinha visto e o que via agora. E Maria, de sua janela, via tudo, via muito, mas não acreditava no que se mostrava naquelas paisagens.
Na paisagem Maria viu João reclamando da vida. Tinha razão o rapaz. Dizia que tinha que levantar sem dormir, sair ainda no escuro para trabalhar, ter que andar a pé e pegar três conduções, e mesmo assim chegava atrasado e tinha o seu ponto cortado. No fim do mês era o começo de outra desgraça, pois o que ganhava não dava nem pra pagar as contas passadas nem pra comprar nada daí em diante. Perdeu o emprego e deu pra roubar. Maria não sabia disso e só ficou sabendo naquela paisagem. Na volta teria que conversar com João, se já não estivesse preso.
Na paisagem seguinte Maria viu Zefinha toda alegre e sorridente, enfeitada e perfumada. Duvidou ser aquela Zefinha que conhecia. A menina era um recato em pessoa, exemplo de conduta na comunidade, dizia até que deveria estar num convento. Nunca tinha sido vista com namorado nem com conversinha pelos cantos com homem nenhum, as más línguas diziam até que ela devia mesmo era gostar de mulher. Passava quase o dia todinho fazendo docinhos pra ajudar na pouca renda da família. Passava a noite todinha... Onde passava a noite Zefinha Maria só via agora, naquela paisagem, mostrando a prostituição da mocinha.
Na próxima paisagem Maria enxergou Pedro contente da vida, mas num contentamento sem alarde, apenas como gesto de felicidade de quem tem motivo para estar assim. De pais pobres, de cor negra, nascido ali mesmo perto do morro, estudou menos do que teve vontade, e só parou o estudo normal porque casou cedo, vieram os filhos e muitas responsabilidades, mas continuou fazendo cursinhos aqui e ali e tinha diploma na parede disso e daquilo. Continuava pobre mas lutava sem parar, daí o seu imenso contentamento com a vida que lhe daria grandes realizações. Ao menos era isso que Maria via na paisagem de Pedro, e quanto contentamento ele ainda teria.
Outra já era a paisagem e nela estava Lurdes. Maria olhava com mais curiosidade, tentava ver algo diferente, alguma novidade, alguma coisa que ainda não conhecia nela. Mas tudo era muito normal, muito realidade, muito presença daquilo que já sabia de cor sobre ela. E viu a mulher guerreira, incessante trabalhadora, discriminada pela sua origem e cor, desrespeitada nos seus direitos, sem grandes perspectivas na vida, tendo que forçosamente conviver lado a lado com o nada e o quase nada. Era Lurdes, mas Maria já conhecia essa história, e somente quando a paisagem foi ficando pra trás é que reconheceu naquela Lurdes uma mulher brasileira.
Maria pensou, sorriu e chorou com aquelas paisagens. Como seria a sua paisagem? Pensou e pensou. E sem querer enxergou a si mesma viajando, como estava agora, com pressa de chegar e, da ilusão e da fantasia, trazendo consigo souvenires, lembrancinhas baratas que valem muito, que são os exemplos da vida.



Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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