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quinta-feira, 27 de outubro de 2016

A MENINA AFEGÃ DE OLHOS VERDES E A MULHER AFEGÃ DE OLHOS TRISTES


*Rangel Alves da Costa


Um lenço vermelho sobre a cabeça e se derramando rasgado pelos ombros até se misturar a uma veste verde-escuro. Olhos grandes, vívidos, de castanho-esverdeado, como que surpreendidos ou espantados. Cabelos castanhos em acaju, e no semblante de pele clara queimada de sol uma menina estranhamente bonita. Filha da guerra, filha do refúgio, filha da crueldade do homem para com os seus. Seu nome: Sherbat Gula. Ou simplesmente “A Menina Afegã”. Uma órfã que desde a meninice começou a conviver com os sofrimentos dos forçosamente deslocados para terras estranhas.
Nesta quarta-feira, 26/10, li no noticiário que Sherbat Gula havia sido presa. Para melhor delinear a situação, informo que a prisioneira é aquela menina afegã, com cerca de 13 anos, de olhos verdes, fotografada pelo jornalista Steve McCurry da revista National Geographic, em 1984, mas com reportagem publicada somente na edição de junho de 1985, então vivendo como refugiada no Paquistão. A fotografia fora tirada em meio a meninas estudando no campo de refugiados de Nasirh Bagh, na província de Peshawar, fronteira com o Afeganistão.
À época, Nasirh Bagh havia se tornado o forçado lar para milhares de refugiados afegãos que fugiam das atrocidades contra mulheres, velhos e crianças no seu país. Desde a invasão soviética no Afeganistão (1979-1989) até a tomada do poder pelos talibãs, num entremeado de guerras, guerrilhas e acossamento sangrento das minorias, que o território paquistanês foi tido como lar distante para deserdados, fugitivos e retirantes. Era neste campo paquistanês que a menina Gula estava quando foi encontrada e fotografada pelo jornalista da National Geographic.
É com Sherbat Gula, pois, a mais famosa capa da famosa e prestigiada revista. Segundo afirma Star Kaur, no site Café com Chai: “A imagem de seu rosto, com um lenço vermelho enrolando sobre sua cabeça e com seus marcantes olhos verdes, olhando diretamente para a câmera, tornou-se um símbolo e tanto do conflito afegão de 1980 e a situação dos refugiados em todo o mundo. A imagem em si foi nomeada ‘a fotografia mais reconhecida’ na história da revista” (http://cafecomchai.blogspot.com.br/2013/03/sharbat-gula-foto-que-deu-volta-ao-mundo.html).
A fama do retrato, contudo, parece não ter acompanhado igualmente a fotografada. Após retornar, vivendo no anonimato ao redor das montanhas afegãs, quando reencontrada em 2002 pelo mesmo jornalista, recordava apenas ter sido fotografada, porém sem jamais ter visto o seu rosto estampado na revista e espalhado pelo mundo inteiro. Feita a devida identificação, uma nova fotografia foi tirada, com ela já aos 30 anos, repetindo a mesma posição, porém nada que revelasse a mesma beleza visual. Apenas uma moça triste, de olhar espantosamente entristecido.
Gula já estava casada, mãe de filhos. E logicamente esperançosa de poder criar os seus sem os sofrimentos do passado. Mas os tempos difíceis no seu país, com a continuidade das guerras, guerrilhas e perseguições às minorias, fizeram com que ela retornasse, mais uma vez na condição de refugiada, ao Paquistão. Dessa vez se deslocou trazendo os filhos. Mais uma vez imitava milhões de pessoas desesperançadas que fogem do medo para viverem a ilusão da salvação em refúgios pelo mundo afora.
Porém, ao tentar esconder seu passado em nome de uma nova vida, incorreu em falsificação de documento. Hoje com 46 anos, a menina de olhos verdes, apenas uma mulher de olhos tristes, foi presa por autoridades paquistanesas. O seu retrato será sempre aquele, mas seu futuro tão incerto quanto a de todos os desvalidos pelas guerras, perseguições e assombrosos refúgios. O retrato de Sherbat Gula hoje poderia novamente estampar a capa da National Geographic, mas com os seguintes dizeres: eis a feição de um povo que sofre pela eterna maldade humana!
Deveras lamentável o ocorrido não só com Gula, que foi transferida para uma prisão à espera de julgamento e certamente será expulsa do país, mas com todos aqueles que ainda convivem com a mesma situação de medo e fuga. Ao falsificar sua identidade, fazendo-se passar por cidadã paquistanesa, a mulher talvez tivesse tentado apenas viver com mais segurança e enfim poder afastar de si aquele eterno véu de temor que sempre encobre as feições dos apátridas, dos renegados da sorte.
Um temor que infelizmente ainda continua perseguindo milhões de pessoas. Os países conflagrados por conflitos acabam expulsando principalmente aqueles mais frágeis e envelhecidos. E estes, sem pátria, vão atravessando fronteiras, se lançando ao mar, procurando a todo custo um meio de sobreviver. E nem sempre sobrevivem. Todos os dias os jornais noticiam naufrágios no Mar Mediterrâneo e mortos como em cardumes. Todos os dias os jornais dizem das desumanas condições de vida dos que alcançam a terra firme para viver como refugiados.
Sherbat Gula queria apenas esquecer o passado. Porém mais uma vez será expulsa do seu refúgio. E novamente ser jogada na crueldade afegã. Novamente fugir pelas montanhas até que seus olhos verdes percam toda a cor.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Luíza Cláudia disse...

Triste condição humana... Mas, verde como os olhos de Gula, ainda persiste uma esperança. Obrigada pelo bem escrito artigo.