*Rangel Alves da
Costa
Na solidão
profunda, na solidão mais aterrorizante, o homem agoniza, transmuda-se,
entorpece. Na solidão o homem estertoriza, lamente, chora, grita, sofre. Não é
sequer humano, apenas o ser transbordante em outro ser horrendo e moribundo.
Na solidão
entranhada nas profundezas, o homem geme, germina a infindável melancolia dos
abandonados. Uma solidão tão absolutamente sozinha que no silêncio maior
assobiam e açoitam as ventanias vorazes, as tempestades atrozes, os famintos
vendavais. Um deserto de caminho de fogo.
Na
solidão, naquela solidão sem chão nem altura, sem lado nem saída, o homem se
desumaniza, desnorteia-se em redemoinhos gulosos de vida. Quer pular, quer
gritar, quer subir pelas paredes, quer encontra uma fresta, quer uma lua, quer
um sol, mas só encontra o negrume retinto da solidão. E de boca aberta e feia.
Dentes pontudos e língua bifurcada, tudo assim na boca da solidão.
Um ser
solitário e metamorfoseado na exata forma kafkiana. Um verme asqueroso, um se
repelente e abominável, um bicho em imprestabilidade rastejante. Membros e
troncos, mente e lucidez, que de nada servem senão para o reconhecimento da
própria desvalia humana. Embaixo da cama, pelos cantos escuros, a miséria
humana latejando a animalidade mais terrificante.
Ou seria
um lobo uivante na altura do monte, de caninos afiados e olhos vermelhos pelo
fogo da solidão? Lobo e sua tristeza, sua angústia, seu terrível e voraz
sofrimento. Na sua solidão apenas o uivo, o brado, o grito dilacerado na noite,
mas quem o avistasse certamente encontraria um espectro forçando a existência.
Terríveis sons na escuridão da montanha, ecos que avançam adiante como se
quisesse tudo transformar no mais cruel desalento.
Assim o
homem na sua solidão. Uma fera, um bicho, um selvagem, um ser bestial, qualquer
coisa ferina que avança e se consome a si mesma. Um ser animalizado,
transformado em irreconhecível criatura. Uma bestialidade de garras afiadas e
pulsações violentas na alma, na pele, nos olhos, na boca, nos sentimentos. Um
ser solto da jaula e preso no seu próprio labirinto. Uma animalesca figura que sequer
se reconhece na sua dor.
Uivos,
brados, gemidos, berros, bramidos, clamores, soluços, lamentos, agonias,
alaridos, clamores. Eis a voz da mais solitária solidão. Eis o que ecoa no meio
da noturna selva dos desvalidos sentimentos, dos devastadores abandonos.
“Contorce-se.
Desgrenha-se em gemidos roucos. Move suas garras afiadas no chão duro. Deitado,
rola de lado a outro, um ser em transmudação. Grita ou berra, geme ou uiva, ou
tudo ao mesmo tempo. Sacoleja, bate no chão, coloca as duas mãos sobre a
cabeça, puxa vorazmente os cabelos, lanha o corpo inteiro, depois se move
rapidamente em direção à parede. Quer subir, quer escalar a parede, quer
alcançar o telhado. Escorrega suas mãos perto da janela. Salta e cai, e
novamente se contorce na mais profunda agonia. Quer fugir, quer encontrar uma
saída para a solidão. Mas o que lhe resta é somente a solidão...”.
“Vai
subindo como pode até alcançar o telhado. Suas mãos em garras afastam telhas e
fazem surgir um laivo de lua. O quarto escuro toma uma cor amarelada e de tez
enferrujada. A pouca luz reflete o rosto crispado, o olhar de fera, a boca de
fera, o corpo da fera em ritual de solidão. Mas não é fera, é homem. Mas não é
mais o homem, é simplesmente a fera gestada na solidão...”.
“Avançou
sobre móveis, derrubou o cálice em cima da mesinha, estilhaçou a garrafa de
vinho. Quis beber veneno, mas não reconhecia o frasco. Sua pele estava rija
demais para que o fio do punhal respingasse o vermelho da aflição. Não havia
arma de fogo, mas naquele momento ele não era caçador, apenas frágil presa.
Cansou-se de tudo, cansou-se do mundo, cansou-se da vida e de si mesmo. Quis
morrer. Decidiu. Urrou pela última vez e adormeceu. Pela luz que descia do
telhado afastado, apenas um vulto lançado ao chão. Dormia. Ainda pulsando
lágrimas e agonias, apenas dormia. Uma fera na solidão adormecida”.
Eis o
homem na sua solidão. Uma solidão tamanha que o torna fera. E já não será mais
homem, mas apenas o bicho perdido na selva escura de si mesmo.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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