*Rangel Alves da Costa
Nas minhas andanças de fim de tarde, pelos
desalentados caminhos do dia a dia, eis que avisto aqueles que eu jamais
imaginei pudesse encontrar lado a lado: o passado e o presente. O primeiro,
velho amigo de estrada, já é conhecido de muito tempo, de outros percursos no
mundo. Já o segundo, mesmo sendo avistado ali e acolá, afeiçoa-se mais a um
conhecido desconhecido e sempre parece tramando alguma coisa que não quer
revelar.
Mas eis os dois em ligeira conversação, com o
passado retirando da memória tudo que desde muito desejava revelar, porém sem a
compreensão e a paciência do presente, que simplesmente dizia estar muito
ocupado para aquela prosa, mas prometia para outro dia um encontro mais
demorado. E assim o presente partiu apressadamente, deixando para trás o
passado envolto em pensamentos. Foi quando me aproximei um pouco mais e o
convidei para uma xícara de café.
O passado aceitou, mas com a condição de ser
café verdadeiro, daquele cujo grão é batido em pilão de quintal, peneirado e
depois colocado em chaleira já de água fervente por cima do fogão de lenha.
Servido no bule e não em garrafa térmica, com açúcar grosso de engenho e não
aquele pó branco refinado pela máquina. E talvez acompanhado de um bolinho de
chuva, biscoito de nata ou bolo de macaxeira, mas com preparo na cozinha e no
forno de lenha, jamais comprado pronto e sem sabor. Mas tudo é difícil demais,
tentei explicar, pois é tão difícil encontrar um pilão no quintal como o café
saboroso e perfumado fervendo em fogo de lenha.
Relutou o quanto pôde, porém acabou aceitando
um café comum, mas desde que não fosse solúvel, sem gosto, imprestável ao
ritual prazeroso de colocar o lábio na borda da xícara e logo sentir vontade de
se queimar. Café em pó ainda é possível arriscar, afirmou o passado, mas desde
que preparado em chaleira antiga, no tempo certo e servido sem estar
requentado. E sem qualquer bolo, biscoito ou bolacha. E disse mais: Já distante
o tempo em que a cozinha era o melhor lugar da casa e esta vivia sempre
perfumada pelos quitutes das velhas senhoras, das vovós sempre preparando
surpresas saborosas para os seus netinhos.
Quase não aceita o café colocado à mesa. Só
concordou em experimentar porque estava quentinho e de negrume forte, leitoso.
Fez descer um gole, mais outro, pediu licença para preparar um cigarro de palha
e se pôs em prática. Tirou do bolso um pequeno embrulho, de dentro retirou
palha seca de milho, um pedaço de fumo e um canivete miúdo. Segurou o pedaço de
fumo com uma mão e com a outra foi pinicando aos poucos, até juntar sobre a
mesa a quantidade certa para o cigarro. Em seguida abriu a palha de milho,
espalhou o fumo e se pôs a dobrar. Depois levou o cigarro à boca para amaciá-lo
e fechar a palha. Estava pronto o cigarro.
Pediu mais café e pouco tempo depois já
estava baforando e ansioso para conversar e, certamente, sobre si mesmo, o
passado. Mas tomei como surpresa ao ouvir que era preciso primeiro enxergar o
presente para avistar o passado, o ontem, o tempo ido. Só se valoriza o passado
quando o confronta com o presente. Daí ser costumeiro ouvir que hoje já não se
faz mais como antigamente, que agora as coisas não chegam nem aos pés de como
eram antigamente, que tudo agora é feito para acabar sem deixar lembrança ou
recordação. Os móveis antigos são exemplos disso. Mesas, oratórios e
cristaleiras de cem anos atrás ainda permanecem firmes, resistentes. Mas o
móvel bonito de hoje já estará esfarelado amanhã.
Até a pessoa de hoje é muito diferente
daquela de outros tempos, foi relatando o passado. De uns tempos pra cá, parece
mesmo que a maioria nasce sem o tempero da vida. Vem ao mundo sem o sal da
temperança para viver num mundo insosso. Ao sangue falta a pitada de coragem,
de vontade de luta, de destemor, de galhardia. O coração parece completamente
destemperado. E no corpo inteiro, desde a alma à sola do pé, o pouco ou
inexistente tempero da honra, do caráter, da verdade, da moral e da decência.
Por isso mesmo é quase nada mais se exemplifica pelo agora, mas pelo que se faz
distante na estrada. E comumente se diz que homem de honra era fulano ou
sicrano, que bastava a palavra e não havia escrita que tivesse mais validade do
que o dito.
E prosseguia o passado, sempre buscando no
contraste com o agora a valia de outros idos. Dizia que muito se fala na
arrogância e no chibatamento dos velhos coronéis, aqueles senhores de
latifúndios e vidas, bem como das botinas dos generais que um dia pisaram sobre
muita gente. Mas hoje, sem a violência e a perseguição de ontem, quem não sente
falta de pessoas de pulso forte, que comandem com zelo e seriedade aquilo que
devam comandar? E o mais importante, que não tergiversem com a realidade da
nação nem com o sofrimento do povo.
E sobre o futuro, perguntei, por fim, ao
passado. E este respondeu: Do jeito que a coisa anda só restará o passado, e
desde muito passado. Nem presente nem futuro merecerá ser relembrado. E quem
viver verá.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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