*Rangel Alves da
Costa
Ontem, logo
cedinho encontrei meu cágado zanzando de canto a outro. E não tive dúvidas de
que iria chover. Não há meteorologista mais eficiente e certeiro do que o
cágado. Passa semanas, meses ou mais, escondido nas tocas, mas quando sai é
para anunciar chuvarada. Não falha uma.
Mas a
chuva se demorou a chegar. O dia inteiro nublado, com um sereninho aqui e outro
acolá, mas nada de pingo mais grosso cair. Somente depois do entardecer, já chegando
à boca da noite, é que as nuvens começaram a abrir suas torneiras, ora mais
leves ora mais derramadas. Assim a noite foi se molhando e transformando as
ruas em desertos e os asfaltos em espelhos que se derramam poeticamente
nostálgicos.
Gosto
quando chove ao anoitecer e molhando vai noite adentro. Minhas plantas
dispensam a água de todo dia e parecem festejar com os pingos caindo nas suas
folhagens. Amanhecem alegres, verdejantes, cheias de vida. Também o clima
melhora, afasta um pouco da elevada temperatura, e sempre torna possível dormir
melhor. Igual a mim, muita gente gosta de sentir a chuva caindo lá fora
enquanto espera o sono chegar.
A chuva
tão esperada sempre chega acompanhada de esperança, de alegria, contentamento.
Mas também com o poder de aflorar sentimentos, entristecer e até fazer chorar.
E assim porque o recolhimento pelos cantos da casa vai trazendo lembranças,
abrindo baús, retomando o passado bonito e pesaroso. A nostalgia vai
transformando o anoitecer molhado num reencontro indesejado.
Quando
chove assim, após o anoitecer, eu sempre gosto de me posicionar ante o portão
da frente e ficar observando a magia acontecer. Perante a luz do poste, as
gotas se tornam perceptíveis e estranhas ao olhar: elas não descem retas, mas
um tanto encurvadas. Depois de caírem no asfalto, logo este vai espalhando
pelos arredores um transbordante espelho. E este se lava e novamente se
encharca daquele alento molhado.
Mesmo o
olhar voltado à rua e a mente vivenciando a beleza do instante, ainda assim é
impossível não rebuscar outros pensamentos. Por dentro uma aflição, uma
angústia inexplicável. Por dentro uma vontade de chorar, de correr pra debaixo
da chuva, de tentar renascer com o banho nas águas novas. Uma recordação de
criança, uma viagem às correrias da infância, uma caminhada ao que já se
distanciou demais.
Já tomei
muito banho nu debaixo da chuva. Quando criança, eu transgredia todas as
precauções familiares e desandava no meio do mundo, atrás de calçada lisa para
me jogar, atrás da meninada para lambuzar, atrás da criançada para tudo fazer
debaixo da chuvarada. E quanto mais a chuva caía forte mais motivos havia para
a danação. E sobre tudo isso recordo nos dias de agora, assim que a noite se
faz chuvosa.
Sei que
muita gente se envolve nos lençóis e irrompe suas saudades sem mostrar suas
lágrimas. Sei que muita gente silencia para não falar sobre os motivos de suas
tristezas. Sei que muita gente se esconde pelos cantos e finge adormecer. Mas
dentro de si uma estranheza sem fim, um despertar de muita coisa que desde
muito julgava esquecida. E a mocinha rente à vidraça embaçada, chorosa por
dentro, vai rabiscando e desenhando corações e luas, pingos e lágrimas.
Choveu
grande parte da noite. Levantei na madrugada e os horizontes nublados apontavam
mais chuvarada. De vez em quando a chuva cai e vai tornando a manhã mais lenta,
mais preguiçosa, mais escondida. As ruas molhadas dificultam a caminhada, os
pneus dos veículos espanam aguaceiro em quem estiver ao redor. Pessoas passam
de cabeça baixa, silenciosas, protegidas por guarda-chuvas. E assim o dia vai
nascendo molhado.
Acaso
fosse no sertão, o amanhecer seria festivo, alegre, cheio de planos e
esperanças. Mas na cidade é apenas uma manhã de chuva. Apenas.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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