*Rangel Alves da
Costa
Não é nuvem
desabando, repentina trovoada, apenas um chover constante, ora mais forte ora
de mais leveza. Mas chove chuva...
E noite
chuvosa é poesia molhada, nostálgica, saudosa, um tanto tristonha. É com se de repente
a noite revelasse retratos escondidos.
Aqui
sentado, tateando letras, já depois das nove, ouço lá fora os pingos caírem.
Sim, porque agora está mais forte, mais chuva chuvosa mesmo.
De vez em
quando levanto e sigo até o portão. Rua vazia, sonolenta, de asfalto molhado,
janelas e portas fechadas, uma noite mais noite. Porém mais bela.
Dentro das
casas, os mistérios. Dentro das vidas, os reencontros. Consigo mesmos e com os
retratos que reaparecem. Somente a chuva noturna para tal despertar.
Tudo parece
ficar mais sublime e singelo na noite chuvosa. Mesmo deitadas, as pessoas se
sentem envolvidas pelos pingos caindo, pela atmosfera mágica por dentro e por
fora.
Talvez
alguém esteja agora rente à vidraça da janela, tentando avistar o passado ou o
presente não acontecido. Talvez alguém esteja chorando rente à vidraça da
janela. Não sei, mas tudo é possível na noite chuvosa.
Talvez
alguém esteja agora relendo cartas antigas, abrindo álbuns, folheando diários
de um tempo feliz. Ou talvez esteja simplesmente molhando o travesseiro com um
caudaloso rio de saudade.
Talvez
alguém esteja silenciosamente pensativo, num cantinho qualquer, por cima do
sofá. Pensa que está ali, mas não está. Não há noite chuvosa que não transporte
a pessoa para lugares inimagináveis noutro instante da vida.
Ouço agora
uma velha canção. E viajo num mar imenso, e balanço nas águas, e aporto num
cais de pedras e solidão. Eis que ouço Porto, a bela canção instrumental de
Dori Caymmi, mas com MPB-4.
Quase não
consigo escrever. A música envolve demais, chama, diz que há um barco no porto
da noite. Levanto e vou até o portão. Estendo os braços e me deixo molhar. A
chuva se derrama sobre minha pele como um abraço molhado.
Olho
adiante e tudo mais parece deserto. A luz do poste reflete cada pingo caindo. O
negrume do chão brilha como espelho d’água. A noite se molha com a lágrima do
dia, a vida se enternece em meio ao silêncio e ao sonolento.
As plantas
do jardim se banham e ecoam canções e palavras. As flores do jardim se abrem em
abraços e dançam a valsa do renascimento. Depois adormecerão para o amanhecer
lustroso, bonito, esverdeado.
Lá no
alto, a lua escondida se deleita de um sono profundo. Talvez sonhe com réstias
de estrelas cintilando ao redor. No breu dos espaços apenas a cortina do
desconhecido. E atrás de tudo certamente as respostas de tudo.
Não há
mais música. Melhor assim. Somente na memória o porto avança e se alarga para
um mar sem fim. Os barcos se distanciam, as pedras choram, a areia acolhe uma
concha e lhe conta um segredo.
Chove
mais. Continua chovendo. Vou até o quintal e caminho adiante, debaixo da
molhada e desabrochada flor da natureza. Dá vontade de tirar toda a roupa e me
deixar molhar, num longo banho como nos tempos de infância.
Preparo um
café e retorno. Beijo a xícara rente ao portão da frente e sinto que agora as
águas escorrem pelo asfalto. Os espelhos se derramam e vão refletindo os
noturnos das transformações.
As pedras
se lavam. A noite se banha. Escrevo as últimas palavras e depois vou sonhar.
Deitado sem adormecer, chamo o meu barco e vou passeando entre as nuvens. Como
é bom deitar enquanto a chuva cai.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário