SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 23 de maio de 2016

CHOVE CHUVA (E A NOITE EM NOSTÁLGICA POESIA)


*Rangel Alves da Costa


Não é nuvem desabando, repentina trovoada, apenas um chover constante, ora mais forte ora de mais leveza. Mas chove chuva...
E noite chuvosa é poesia molhada, nostálgica, saudosa, um tanto tristonha. É com se de repente a noite revelasse retratos escondidos.
Aqui sentado, tateando letras, já depois das nove, ouço lá fora os pingos caírem. Sim, porque agora está mais forte, mais chuva chuvosa mesmo.
De vez em quando levanto e sigo até o portão. Rua vazia, sonolenta, de asfalto molhado, janelas e portas fechadas, uma noite mais noite. Porém mais bela.
Dentro das casas, os mistérios. Dentro das vidas, os reencontros. Consigo mesmos e com os retratos que reaparecem. Somente a chuva noturna para tal despertar.
Tudo parece ficar mais sublime e singelo na noite chuvosa. Mesmo deitadas, as pessoas se sentem envolvidas pelos pingos caindo, pela atmosfera mágica por dentro e por fora.
Talvez alguém esteja agora rente à vidraça da janela, tentando avistar o passado ou o presente não acontecido. Talvez alguém esteja chorando rente à vidraça da janela. Não sei, mas tudo é possível na noite chuvosa.
Talvez alguém esteja agora relendo cartas antigas, abrindo álbuns, folheando diários de um tempo feliz. Ou talvez esteja simplesmente molhando o travesseiro com um caudaloso rio de saudade.
Talvez alguém esteja silenciosamente pensativo, num cantinho qualquer, por cima do sofá. Pensa que está ali, mas não está. Não há noite chuvosa que não transporte a pessoa para lugares inimagináveis noutro instante da vida.
Ouço agora uma velha canção. E viajo num mar imenso, e balanço nas águas, e aporto num cais de pedras e solidão. Eis que ouço Porto, a bela canção instrumental de Dori Caymmi, mas com MPB-4.
Quase não consigo escrever. A música envolve demais, chama, diz que há um barco no porto da noite. Levanto e vou até o portão. Estendo os braços e me deixo molhar. A chuva se derrama sobre minha pele como um abraço molhado.
Olho adiante e tudo mais parece deserto. A luz do poste reflete cada pingo caindo. O negrume do chão brilha como espelho d’água. A noite se molha com a lágrima do dia, a vida se enternece em meio ao silêncio e ao sonolento.
As plantas do jardim se banham e ecoam canções e palavras. As flores do jardim se abrem em abraços e dançam a valsa do renascimento. Depois adormecerão para o amanhecer lustroso, bonito, esverdeado.
Lá no alto, a lua escondida se deleita de um sono profundo. Talvez sonhe com réstias de estrelas cintilando ao redor. No breu dos espaços apenas a cortina do desconhecido. E atrás de tudo certamente as respostas de tudo.
Não há mais música. Melhor assim. Somente na memória o porto avança e se alarga para um mar sem fim. Os barcos se distanciam, as pedras choram, a areia acolhe uma concha e lhe conta um segredo.
Chove mais. Continua chovendo. Vou até o quintal e caminho adiante, debaixo da molhada e desabrochada flor da natureza. Dá vontade de tirar toda a roupa e me deixar molhar, num longo banho como nos tempos de infância.
Preparo um café e retorno. Beijo a xícara rente ao portão da frente e sinto que agora as águas escorrem pelo asfalto. Os espelhos se derramam e vão refletindo os noturnos das transformações.
As pedras se lavam. A noite se banha. Escrevo as últimas palavras e depois vou sonhar. Deitado sem adormecer, chamo o meu barco e vou passeando entre as nuvens. Como é bom deitar enquanto a chuva cai.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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