*Rangel Alves da
Costa
Sentado
debaixo de pé de pau, velha tamarineira que somente o tempo há de dobrar, ouço
o que um e outro tem a dizer acerca do cangaço. Sim, porque pelos sertões
adentro o cangaço ainda causa acaloradas discussões e relatos apaixonados. Não
por parte daquela gente que vivenciou seu instante na sola do pé ou no espanto
do olhar, mas de um povo que ainda gosta de relembrar do sertão quando era o
mundo de Lampião.
Impossível
ser de Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo e não gostar de tudo que seja
relacionado ao cangaço, ainda que seja para escorraçar “aqueles malvados que chegavam
para revirar tudo, levar no embornal menina nova e fazer com que famílias
inteiras fugissem em correria, de bater perna na bunda, e nem sentir espinho no
pé nem ponta de pau lanhando tudo”.
Mas
outros, mesmo não querendo assumir seu orgulho de serem do sertão cangaceiro,
sempre relatam um tempo de valentia, de afeição à luta e até de defesa das
ações sangrentas perpetradas contra aqueles que infernizavam o sertão: o poder
político e latifundiário, a volante e o medo. Uma coisa se juntava a outra e
tudo redundava numa perseguição desenfreada muito mais ao pobre homem da terra
do que mesmo àqueles entrincheirados nas caatingas. Ora, era o poder quem
massacrava o sertão, e não Lampião.
E vem um e
diz: “Ainda recordo de Durval Rodrigues Rosa ali sentado na varanda da frente
de sua casa, na Praça da Matriz. O homem sabia muito, principalmente dos
acontecidos que antecederam a chacina do bando. Mesmo rapazote, naquela idade
em torno dos treze anos, já compreendia tudo sobre o que se passava ao redor.
Lidava com a terra, com o bicho, e também com cangaceiro. E não se pode
esquecer que a Gruta do Angico ficava nas terras de sua mãe, Dona Guilhermina.
E certamente Durval e seu irmão Pedro de Cândido, este mais velho, tinham pleno
conhecimento de tudo o que se passava ali. Não se sabe por que Durval resolveu
silenciar acerca da veracidade dos fatos. Pouco falou, mas sempre negou que seu
irmão tivesse se envolvido com traição ao bando acoitado nas suas terras.
Precavido em cada palavra, se manteve quase como um ausente daquela realidade. Mas
sabia muito. Só abria a boca pra falar em política. Política partidária passou
a ser a razão de sua vida. Foi prefeito cassado, foi prefeito novamente eleito.
E elegeu também dois de seus filhos, João e Ivan. Durante muito tempo foi
adversário ferrenho de Alcino Alves Costa. Era briga de fogo e sangue. Mas Alcino
ganhou todas as eleições que disputou. E foram três. Depois abrandaram as
diferenças, deixaram as rivalidades de lado e cada um passou a viver de
relembranças das glórias e inglórias políticas. Hoje os dois já não estão mais
entre nós. Durval foi primeiro, e partiu sem abrir o baú dos segredos do
Angico. Alcino partiu depois, mas com uma vontade danada de ter tido mais tempo
para desvendar todos os segredos daquele baú”.
E vem o
outro e diz: “Outro dia Mané Félix estava aqui entre a gente. Um homem de valor
como aquele não merecia ter morrido no esquecimento. Todo mundo sabe que foi o
maior coiteiro já nascido por todo o sertão, tanto assim que era o mais
confiado por Lampião. Recordo apenas ele, naquele tamanhão todo, caminho um
tanto encurvado e lentamente nas suas poucas andanças. Não gostava da cidade,
mas do mato, da beira do rio e do garrancho, e talvez por isso mesmo nunca
tenha acostumado com esse chão diferente. Mais das vezes era encontrado na sua
cadeira de balanço, dentro de casa, sempre de chapéu de couro à cabeça. Olhar
distante, turvo, como um espelho opaco que não perde lá dentro toda a sabedoria
catingueira”.
“Quanta
gente importante que foi esquecida”, dizia outro. E prosseguia: “Em Poço
Redondo, por muito tempo, Zé de Julião, o Cajazeira do bando de Lampião, foi um
morto enterrado de vez, para o conhecimento do lugar e para a história. Ninguém
ao menos sabia quem era o homem, o seu passado, sua importância histórica e
política. Foi rapaz rico, foi cangaceiro, perdeu sua Enedina no fogo do Angico,
depois deu pra ser empreiteiro e político. Não sofreu no cangaço nem um
tantinho assim do que penou na política, através da perseguição desenfreada.
Tomaram-lhe a prefeitura por duas vezes, por meio de fraude. E depois sua vida,
por meio de assassinato. Foi preciso que Alcino desenterrasse a história do
homem e desse ao conhecimento de todos a sua importância e seu justo
reconhecimento. E através de Alcino, o cineasta Hermano Penna contou parte de
sua vida num filme. E não se pode esquecer Adília. pessoa humana maravilhosa, de
poucas palavras, mas acolhedora. Viveu e morreu pobre, também praticamente
esquecida pelos seus conterrâneos, e morando ali no Alto de João Paulo, logo
depois do riachinho que corta a cidade”.
Por isso
mesmo que não me canso de ouvir tais causos, tais relatos. E tenho um embornal
cheinho de coisas assim.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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