SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

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sábado, 6 de novembro de 2010

DOIS OLHOS (Crônica)

DOIS OLHOS

Rangel Alves da Costa*


Quando eu era bem menor, criancinha mesmo, pensava que cada um dos dois olhos de uma pessoa enxergava coisas diferentes. Se um olhava uma coisa, o outro olhava outra, e por isso mesmo as pessoas enxergavam tanto bem e tanto mal de uma vez só na vida.
Quando fui crescendo, me tornei rapazinho e já entendia de grande parte das coisas do mundo, ainda assim continuei imaginando que os dois olhos de uma pessoa não viam as coisas da mesma forma. Os dois enxergavam o mesmo cenário, a mesma paisagem, mas cada um escolhia aquilo que queria ver.
Quando me tornei adulto, pensando que as experiências da vida e o conhecimento das realidades fossem mudar minhas noções sobre o olhar, descobri que a criança e o adolescente é que estavam certos, pois os olhos das pessoas enxergam mesmo diferentes.
E o pior é que acabei descobrindo que muitos deles, por mais que olhem e se deparem com os fatos e os acontecimentos, mesmo assim não querem ver nada, fingem que não viram coisa alguma, criam propositalmente neblinas de omissão, fraqueza e covardia.
Hoje não tenho mais dúvidas do erro em se fazer nascer no ser humano olhos que podem enxergar tudo ao mesmo tempo. Por que dois olhos vendo a mesma coisa se não sabem o que querem enxergar, se não sabem distinguir uma lua do sol, um dia duma noite, uma gota de sangue dum pingo d'água?
Se os olhos do homem surgissem no rosto tendo cada um o seu próprio mecanismo de sustentação, sem nervos óticos que interferissem ao mesmo tempo nos dois e sem a as afecções de um tendendo a atingir o outro, tudo seria diferente, melhor e verdadeiramente útil. Por exemplo, cada um teria a liberdade de enxergar o azul que quisesse no azul anil do anil.
Para a própria pessoa isso seria muito útil porque passaria a se preocupar somente com outros órgãos do corpo e não teria que suportar determinados reflexos que lhe chegam do olhar e que afeta de dor e morte toda a estrutura mecânica e espiritual.
Quantas noites o indivíduo passa sem dormir porque os dois olhos tiveram de enxergar, ao mesmo tempo, a natureza triste mais triste ainda? E nem é bom saber por que tanta tristeza na natureza...
Como tudo na vida é bom ou ruim, bem ou mal, alegre ou triste, feio ou bonito, manso ou violento, anestesiado ou dolorido, amado ou abandonado, presença ou ausência, reconhecimento ou ingratidão, janela ou porta, telhado ou chão, chegada ou partida, morte ou vida, nada mais justo que a liberdade do olhar possibilitasse com que cada olho se afeiçoasse mais a enxergar qual lado dessas contradições deseja ver.
Contudo, o que não pode continuar persistindo é a situação como está, com os dois olhos vendo tudo ao mesmo tempo e, muitas vezes ou quase sempre, nenhum deles querendo enxergar o lógico, o visível, o tão real à sua frente. Saiam dá frente e dêem lugar ao cego, dêem lugar aos olhos do cego, que na névoa descobre ou inventa a realidade...
Insisto que seria melhor cada um dos olhos fazendo a sua parte como bem entendesse porque evitaria que um continuasse necessariamente como cúmplice do outro. Assim, nada impediria que um olho vivesse chorando de saudade, enquanto o outro se estenderia pelas distâncias da estrada para ver se ela já estava retornando.
E não seria estranho que os dois se amassem. Um olho acordado protegeria o outro enquanto estivesse dormindo e sonhando.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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