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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 8 de novembro de 2010

ZEZINHO NO MUNDO E O MUNDO DE ZEZINHO – 20 (Conto)

ZEZINHO NO MUNDO E O MUNDO DE ZEZINHO – 20

Rangel Alves da Costa*


Quando o padre Carmélio achou que tudo já estava em conformidade, todas as ordens expedidas e com o menino salvador da igreja católica à sua disposição para, dali em diante, dar início a uma nova revolução na evangelização, eis que Zezinho se levanta do banco onde esteve sentado esse tempo todo e pergunta em voz alta: "Agora posso falar?".
E o sacerdote, que estava de costas, se virou assustado com o que ouviu e disse, após um pequeno gesto de reverência: "Pois não, bondoso salvador da nossa igreja e chama a invadir todos os corações dessas pobres pessoas com seus corações em cinzas...".
Então Zezinho começou a fazer sua explanação sobre o que achava daquilo tudo, daquela sua elevação à não sei o quê sem a sua permissão:
"Em primeiro lugar seu padre, tenho a dizer que o senhor parece que está me tratando como se eu fosse outra pessoa. Não sou outra pessoa não, pois sou apenas José dos Santos, ou Zezinho como gosto de ser chamado, e filho de Rosinha e João, todos dos Santos e agora mais dos santos ainda, já que estão falecidos. Quanto à minha mãe, tenho esperança de que não morreu não, mas meu pai esse eu até vi sendo enterrado..."
Enquanto o menino falava, a igreja ia recebendo um dois fiéis e mais, que sentavam distantes e depois se aproximavam um pouco mais e mais só para ouvir melhor o que aquele menino dizia. E Zezinho nem se importava com isso, preocupando-se apenas em tentar sair daquela situação toda. E continuava:
Nasci lá no mais distante sertão, bem ao lado do sol mais ardente e da lua mais bonita, fui vizinho de catingueira, mandacaru, facheiro, xiquexique, palma, urtiga e cansanção, aroeira e caibreiro, pertinho das cobras que se escondiam nas moitas por todo lugar e amigo do riachinho que só corria quando chovia, do poço de água salobra, do tanquinho barrento, dos passarinhos que fazem moradias nos pés de pau na malhada, dos bichos os mais mansos e mais ferozes. Deixei lá papagaio como amigo, cachorro como amigo, sabiá como amiga e um cágado como o melhor amigo que há no mundo. Minha casa pobrezinha, de três vãos de barro e fogão do lado de fora, era mais bonita e mais gostosa de se viver do que o mais rico e imponente palácio do mundo. Se tinha pouca comida e dias que não tinha quase comida nenhuma, mesmo assim a gente nunca perdia a esperança de ter qualquer coisa no dia seguinte. Assim também era com a água, a roupa e quase tudo na vida..."
De repente, ali e acolá, de vez em quando começou a se ouvir "Amei Jesus!", "Glória ao Pai!", "Com a verdade de Deus!". Mas Zezinho continuava:
"Minha vida, seu padre, sempre foi assim, sempre foi marcada pela dor e pelo sofrimento, com nada que chegasse a gente de mão beijada. Mas mesmo com todas as dificuldades, jamais deixemos de ter esperança nos dias melhores. Ano entrava e ano saía sem nada mudar, mas a gente tinha certeza que um dia tudo ia mudar pra melhor, e só saímos de lá e deixamos nossas esperanças trancadas por trás da porta foi porque a morte do meu pai nos deixou praticamente no abandono. E minha mãe, pra não fazer besteira e com toda razão, achou melhor que a gente fosse embora pra outro lugar, lá no sul do país, onde mora uma irmã dela, minha tia. Só saímos de lá por causa disso, só saímos de lá porque não tinha mais jeito de uma mulher sozinha, desempregada e com um filho pequeno, se virar sozinha debaixo daquela seca que mata até bicho e embaixo do sol grande da desesperança que vai matando e depois seca o homem..."
E a igreja repentinamente começava a receber mais e mais fiéis, que iam chegando, ouviam o que o menino estava dizendo, se interessavam por suas palavras e iam sentar cada vez mais próximo de onde ele estava, em pé, firme, como um advogado em sua tribuna, como um defensor inflamado na sua defesa:
"Saímos de lá assim e chegamos aqui para seguir adiante, para tomar outro ônibus para o sul do país. E foi então que aconteceu o imprevisto de, no meio daquela multidão toda da rodoviária, eu soltar a mão da minha mãe para nunca mais. Entrei num ônibus, dormi e fui parar numa garagem e hoje estou aqui. Ela certamente ficou enlouquecida me procurando por todos os cantos, mas não conseguiu me avistar mais. Ainda hoje quero voltar para aquela rodoviária para ver se encontro ela, mas dizem que não adianta porque ela não suportou o sofrimento me procurando e morreu. Hoje mesmo encontrei um jornal pelo chão e vi uma notícia dizendo que ela tinha morrido. Tinha até uma foto dela, mas mesmo assim acredito que ela ainda está viva e que ainda hei de lhe encontrar..."
E no meio da multidão que já se formava na igreja era possível enxergar pessoas chorando, em prantos com lenços pelos olhos e narizes, ajoelhadas, com mãos erguidas para os céus e muitas delas dizendo: "Eis o menino pregando no deserto!", "Eis a pregação do salvador no templo dos infiéis!", "Estas palavras nos fortalecem!", "A igreja se encanta com as palavras desse menino!", "Glória a Deus nas alturas!".
O padre Carmélio, percebendo a receptividade do povo e maravilhado com aquele verdadeiro milagre de a igreja estar com dezenas de fiéis àquela hora do dia, pediu para que Zezinho subisse no banco para continuar falando. E quando ele subiu na madeira e olhou adiante, viu entrando uma mulher pela porta principal e disse bem alto:
"É minha mãe. Ela está entrando na igreja agora...".


continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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