À SOMBRA DA ÁRVORE
Rangel Alves da Costa*
Estou cansado sim, pois a estrada é longa e muito chão ainda tenho pra pisar, mas parei aqui debaixo do sombreado dessa árvore, baraúna que tem veia e sangue, só pra espanar o sol da moleira um tiquinho, mexer no fundo do embornal, catar um restinho de rapadura com farinha, depois tomar um gole d'água do cantil de couro e seguir adiante.
Dizem que essa árvore tem mais história do que qualquer casa e caminho que tenha ao redor. Já estava aqui quando os homens pisaram nessa mata pra desbravar o sertão. No seu tronco viu ser amarrado animal de montaria e carga, na sua sombra viu repousar muito homem valente e muita valentia que dormia com um olho fechado e outro aberto.
Meus bisavôs e os bisavôs deles certamente já ouviram contar histórias e causos sobre essa baraúna que se tornou marco em toda região. Se o forasteiro pede informação, logo dizem que siga até aquela árvore assim e assim e depois vire pra direita e pra esquerda. É a referência do mundo sertanejo, e talvez o único que ainda exista diante da sede destruidora do homem.
Os mais velhos contavam que era moradia de seres desconhecidos nas noites mais escurecidas do sertão. Lobisomem saia debaixo dela para ir até os quintais das mulheres que traiam os maridos, e muitas delas até gostavam de ser azunhadas e mordidas pelo bicho, só porque tinha homem no nome, era lobisomem. Já padre safado tinha medo do bicho que se pelava.
Curupira, caipora, fogo-corredor, bicho de sete cabeças, boi de prata, cavalo com uma perna só, porco espinho com fogo pelas ventas, tudo se reunia ali para dividir seus locais de fazer assombração. Numa noite, enquanto decidiam que todos invadiriam o lugarejo para comer as criancinhas choronas, surgiu uma luz bem forte no alto da baraúna que todos os bichos cegaram e, saindo amedrontados em disparada, foram parar sem querer nas profundezas das águas do Velho Chico.
Meu avô mesmo certa vez teve que pernoitar uma noite de breu debaixo dessa árvore e viu coisas que não esqueceu jamais. Arriou da montaria, mandou o cavalo pastar ao redor, comeu seu preá assado com uma lapada de pinga, se aprontou pra deitar, fechar os olhos e descansar pra levantar ainda de madrugada.
Mas não teve jeito de adormecer nem depois que repetiu as rezas, pois toda vez que chegava uma modornazinha e começava a ouvir gente conversando bem pertinho e mais adiante. Falavam de boiadas, de boi perdido no mato, da vida dura do tangedor de gado, dos amores que ficaram para trás e daqueles que certamente encontrariam.
Acordou sem dormir um tantinho assim. Montou sela antes da hora pra não ficar mais ali. Quem já se viu tanto converseiro e sem vê o povo que conversava? Depois ficou sabendo que não era o primeiro a passar por aquilo não, pois todos aqueles viajantes que já tentaram repousar ali tiveram a companhia dos antigos boiadeiros que por ali passaram há cinquenta, cem anos ou mais.
Dizem até que a baraúna fala sozinha também, que é mal-assombrada e que muitas vezes solta formigueiros dos seus galhos em cima de quem não gosta. Não posso desacreditar porque os mistérios existem é para desafiar o pensamento. Mas para mim é uma árvore qualquer, bonita, majestosa e de importância histórica no lugar.
O que não consigo compreender é somente o fato de que quando cheguei aqui, há pouco tempo atrás, suas folhagens estavam todas ressequidas e agora vejo tudo verdinho. Consigo até enxergar alguns frutos grandes e dependurados, quase caindo na minha cabeça. Mas é uma jaca que vai cair. E desde quando baraúna dá jaca?
Sei não, viu! Só sei que me encanto demais com essas histórias.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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