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sexta-feira, 5 de novembro de 2010

EU VI UM MENINO E UM POEMA! (Crônica)

EU VI UM MENINO E UM POEMA!

Rangel Alves da Costa*


Talvez tenha sido na manhã, na tarde ou na noite, tanto faz, mas eu vi um menino saindo de um poema de Manuel Bandeira. Juro que vi, mas sobre o seu corpo e o seu ser, ao invés de poesia, havia uma tragédia.
Não sei por que esqueceram de deixar o poema de Bandeira jogado na vida, no meio do mundo, no abandono dos dias e das noites. Mas não tenho dúvida que o poema era mesmo o de Bandeira e o menino parecia o bicho descrito pelo modernista pernambucano.
Todo mundo conhece o poema "O Bicho", mas talvez ninguém conheça o menino, nem o próprio pobre coitado se conhece. Na escola, na biblioteca, deitado na cama, quase todo mundo já leu:
"Vi ontem um bicho/ Na imundice do pátio/ Catando comida entre os detritos./ Quando achava alguma coisa;/ Não examinava nem cheirava:/ Engolia com voracidade./ O bicho não era um cão,/ Não era um gato,/ Não era um rato./ O bicho, meu Deus, era um homem".
O pior que o poema bandeiriano parece ter sido copiado milhares de vezes e espalhados por todos os lugares.
O poema está embaixo das marquises, embaixo dos neons e iluminados pela lua, onde se avista pequeninos corpos deitados ao relento depois de um dia sem dia, cansados de tudo da vida, mais próximos da morte do que do dia seguinte.
O poema está nas esquinas, desafiando a loucura do trânsito e da violência da cidade, empunhando rodos com flanelas, molhando os vidros dos automóveis e pedindo uma esmola que não é pra comida alguma, mas para a compra de drogas.
O poema está passeando, muitas vezes em grupos de três, quatro ou cinco crianças, com cola de sapateiro, solventes e outros entorpecentes enrolados em panos ou por baixo do restante das camisas, naquelas que fazem uso constante e indiscriminado e deixam abismados os olhares daqueles que somente se espantam e não fazem nada.
O poema está no gueto, no esgoto, na favela, na frente, ao lado, na casa, no barraco, soltando pipa para alertar traficantes, roubando carteiras, dando rasteiras na vida, furtando a própria casa e dos desconhecidos para manter os vícios, roubando a própria vida e destino.
O poema faltou à escola, não vai escola, não estuda mais; saiu cedo de casa, não saiu de casa porque não tem casa e mora nas ruas; não come, não trabalha, não tem dignidade, não se olha e não se vê, mas é olhado por milhares e milhões que quanto mais enxergam se acostumam com a miséria, a tragédia, a indignidade, o fim do mundo.
O poema às vezes bate à sua porta, outras vezes pula o seu muro, entra pelo telhado, invade o seu jardim, toma emprestado o que você tem mais do que ele; às vezes é preso, apanha, é solto, retorna novamente ao seu itinerário para dar validade ao ciclo da pobreza e miséria absoluta no País das erradicações.
O poema mata e morre, o poema é esquecido no meio do mato, no meio do asfalto, é coberto por jornais, é somente mais uma estatística; vira sangue, se transforma em vala, não requer pranto nem dor, pois quem morre é apenas um poema.
O poema espanta pela sua certeza, verdade e visibilidade; pela realidade que carrega em cada linha de versos brancos e sem rima. É poema vida, e só isso. Mas é muito mais de morte o poema.
Mas cada um pode optar em ler ou ver o poema. Pode olhar na esquina que se avista verso e reverso.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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