SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 27 de novembro de 2010

MANDACARU (Crônica)

MANDACARU

Rangel Alves da Costa*


Preferia ser mandacaru a essa ideia de que sou forte porque sou sertanejo. Forte mesmo eu sei quem é, e é ele, danado que avisto todo dia enquanto me apoio na enxada para enxugar um pouco o suor desse meu rosto lenhado pelas durezas da terra.
Nunca vi mandacaru reclamar de sua situação, ainda que todo mundo olhe pra ele e sinta a angústia, a tristeza e a desilusão. É assim não porque sofra com sua condição de planta exemplo de suportar sofrimento, mas pelo que vê no entorno, nos arredores onde vivem mais tristes ainda o mato seco, o ninho abandonado da acauã, o facheiro ressequido de tanto sol.
Vive sozinho porque o homem quis assim. Na mataria que existia, ao lado das moitas, catingueiras, umburanas, quipás e toda trançeira de árvores tortas pela falta de nutrientes na aridez do sertão, cortava seus dias ao lado de sua imensa família. E que imensa família a desses cactos que chegaram ao mundo junto com a luz e passaram a testemunhar com olhos de espanto tantas mudanças doloridas.
Família grande, eu disse, e tão imensa que é que até dizem que as raízes hereditárias são mais extensas do que qualquer cristão possa imaginar. Sertanejo conhece, é amigo, mas não sabe tudo. Também pudera, pois o matuto mal tem tempo para colher a sobrevivência nas pedras. Mais ainda estão por lá, dispersos, espalhados, o xiquexique, a palma, o facheiro, a urtiga, a cansanção, a cabeça-de-frade e outras que fazem dos espinhos formas de proteção.
Enxergo ele bem à minha frente, mandacaru afoito, bonito, esbelto, esguio, ainda verdejante para raiva do sol inclemente. O sol odeia o mandacaru de fogo a sangue, tem o cacto como o seu pior inimigo, pois faz de tudo que pode pra provar que mais dia menos dia vai fazer com que seus raios esturriquem até secar aqueles espinhos que parecem de ferro.
Mas ele é teimoso, valente, cabra macho, por isso é que resiste e insiste em se mostrar portentoso e vivo ainda que seja a última espécie viva depois da estiagem, da seca medonha. Chorou muitas vezes, não se pode negar; já deu vontade de sair por aí sem destino como certa vez fez um pé de angico e uma aroeira. E chorou ainda lágrimas de sequidão quando viu bicho morrer, a terra rachar, passarinho sumir, gente se desesperar e ele sem poder fazer nada. Destino triste de testemunha da dor é esse o do mandacaru!
Está lá, no meio do nada onde um dia foi mataria, depois roçado e hoje é só descampado. Restou ali por sorte, talvez porque a mão malvada do homem temesse levantar o machado e derrubá-lo no seu tronco que parece cruz. E é verdadeira cruz, com o Cristo dos sofredores ali crucificado ente os muitos espinhos.
Um dia, me acheguei perto dele e perguntei por que existem tantos mistérios, histórias e lendas envolvendo o seu nome. E ele me pediu para relatar apenas uma, uma só. Aí eu contei diversas:
Tem gente que conta que quando você floresce é sinal que a chuva chega no sertão; outros dizem que os seus braços em cruz, voltados sempre para cima, para o ar, é porque neles um dia você acolheu o Senhor; dizem que você não come nem bebe, mas chora e sente sede, e à noitinha, quando a lua está bem escondida, vai de mansinho se fartar nos nutrientes e na água que armazena no caule; contam, e isso acredito, que os seus grandes espinhos também serviam às mulheres rendeiras, em substituição aos tradicionais alfinetes, como guias das linhas dos bilros; dizem que você passa esses dias de solidão sertaneja com os braços erguidos em oração, e quando chega o anoitecer acende velas nesses braços que mais parecem candelabros de igrejas antigas; afirmam que suas flores só aparecem à noite, que é para que ninguém sinta que existe beleza na solidão.
Então, depois de ouvir essas histórias todas ele me disse que tudo era verdade e mentira. Verdade e mentira, bem assim. Mas tinha uma coisa que ninguém ainda tinha assuntado e que eu saberia naquele instante. E me disse com um sorriso triste:
"Minha única tristeza é saber que jamais poderei morrer, descansar eternamente um dia. Fui escolhido para ser a feição e face do sertão, por isso não posso fechar os olhos e partir. O sertão morreria comigo!".




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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