Rangel Alves da Costa*
A crendice se distingue da fé, mas nesta
geralmente tem seu fundamento. A crendice é tida como a crença popular, ou
seja, aquilo que o povo, por tradição ou costume, tome como verdadeiro, ainda
que sem nenhuma explicação racional ou de real existência. Contudo, se o povo
acredita em algo a partir de motivos sobrenaturais ou de concepções religiosas,
então se tem como verdadeira fé.
E quanto maior a fé maior a crença que a
própria existência e tudo na vida dependem da intercessão divina. E nunca se
mostra uma fé dependente do conhecimento das escrituras sagradas, dos ritos
religiosos ou da obediência aos mandamentos da igreja. A pureza de uma fé em
tais moldes está enraizada no sentimento. É a certeza de que a vida é um
destino e que tudo está determinado por um desejo sagrado. Também a certeza que
os males do mundo se originam da desobediência ao que foi concedido ao homem na
sua existência.
Em muitas pessoas, principalmente aquelas
mais humildes e viventes nas regiões mais distantes, onde a religiosidade se faz
presente desde a primeira oração da manhã aos rogos noturnos, ter fé significa
apenas acreditar no poder de Deus sobre todas as coisas. E disto decorre a
crença no poder da ação sagrada sobre tudo. Por exemplo, não chove por vontade
de Deus, daí que se busca a reversão através das preces, orações, promessas,
ladainhas e procissões. A pobreza e as dificuldades na vida também são vistas
como desejo divino, mas a fé no seu auxílio permitirá que não falte o pão, que
o mal maior não recaía sobre a família, que a subsistência esteja sempre
garantida.
Tem-se, pois, que a fé é também uma espécie
de crença. Acredita-se no poder de Deus, nos fundamentos da igreja, nos primados
próprios da religiosidade, mesmo que jamais tenha lançado o olhar sobre uma
linha da bíblia. Como afirmado, diante do povo humilde a fé não prescinde de
nenhuma igreja, de vigário ou de missa, pois o divino já surge sacralizado
desde as gerações familiares. Ao menos assim em tempos mais antigos. A
religiosidade se fundamenta, pois, na crença divina e nos poderes dos santos e
anjos, mas também no temor do pecado.
Entre parte da população mais carente ainda
persiste a indefinição entre fé e crença. Por tradições antigas e costumes
enraizados nos seios familiares, ainda se concebe a crendice como algo
inseparável da fé. Por exemplo, a crença de que deve se benzer toda vez que
colocar o pé fora de casa, possui raiz no medo de que os santos não protejam a
caminhada. Como observado, é uma crendice fundamentada na religiosidade. Do
mesmo modo, a ideia de que não se deve passar defronte a uma igreja sem se
benzer. O gesto nada significa se o coração não busca a face de Deus, mas mesmo
assim se procede por medo de estar desrespeitando o templo sagrado.
A verdade é que aos poucos tudo vai se
deteriorando, diminuindo, perdendo sua razão de existência. Mesmo nos sertões,
o fervor religioso e as crenças vão perdendo força cada vez mais. Nem mesmo as
rezas, as missas e procissões, possuem acompanhantes como noutros tempos. A
igreja não é mais um lugar aonde se chega com véus, livros sagrados, terços e
rosários, num silêncio quase enlutado. Poucos são os que ainda confessam, que
ainda traduzem as missas na alma e sabem o significado do recebimento da
hóstia.
Mas houve um tempo muito diferente. Mas
também um tempo misto de fé e de crença. Tanto assim que até os fenômenos da
natureza eram vistos em comunhão com os desejos divinos. Se tudo dependia dos
poderes de Deus, dos santos e anjos, então aquilo que viesse dos espaços, com
as chuvas, as secas, as tempestades e as pragas, era visto como dádiva ou mero
castigo. Num povo de fé extremada, bastava que as estiagens se prolongassem
para que aos céus fossem lançadas preces em busca da piedade divina.
Os deuses de hoje vivem em céus diferentes do
Deus do passado. E há deuses em tudo e para tudo: o deus do acaso, o deus do momento,
o deus apenas lembrado de vez em quando. Mas outro Deus ainda faz moradia em
muitos lugares e em muitos corações. Há um verdadeiro céu após a porta do
casebre interiorano. Há um verdadeiro céu na luz da manhã e em cada instante da
vida. E assim acontece pela fé. Um povo de fé encontra o seu Deus e o mantém
vivo em qualquer situação de existência.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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